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Poça de sangue

Tá lá o corpo estendido no chão… e a vela acesa lembrando o beijo de Judas

Publicado

Autor/Imagem:
Ana Pujol - Foto Produção Irene Araújo

Três disparos e o corpo do homem vai ao chão. Dois tiros no peito e um na pilastra que dividia as portas da padaria. Os outros dois homens que estavam na mesma mesa se afastam para trás com a roupa e o rosto respingados de sangue.

O homem ainda tem movimentos bruscos até paralisar mortalmente.

Da carrocinha de cachorro quente ao lado do jornaleiro já fechado, em frente a padaria, outro homem paralisado, de terror. A moto com dois homens que fizeram os disparos pediram ao humilde vendedor que se afastasse da carrocinha, o que ele fez, mas manteve-se inerte ficando surdo com o barulho dos disparos.

Menos de um minuto de silêncio foi quebrado pelos latidos do cão que acompanhava o homem, agora morto no chão.

Uma poça de sangue vem surgindo do seu corpo deitado de bruços no piso frio. Frio do piso azulejado. Frio da noite de inverno com aquela chuvinha fina. Frio da morte rápida e violenta.

As pessoas começam a chegar, uma pequena multidão curiosa. Os atendentes da padaria param tudo para olhar a cena. Pessoas que estavam em outras mesas levantam-se assustadas. Os homens que estavam à mesa com ele,
desaparecem.

Do meio da multidão ouve-se um grito de uma mulher, que rompe destemida e se joga no chão. A recém viúva chega ao local. Agarra-se ao corpo em prantos.

– Quanta violência! A padaria foi assaltada? – diz em seu delírio. Ele é um homem de bem. Estava acertando a vida. Nem andava mais armado.

Desfez-se da arma.

Alguns ficaram quietos e os curiosos murmuravam baixinho.

Os dois eram antigos no bairro e todos sabiam que tudo que ela falava não era verdade.

Quando os bombeiros chegaram e atestaram a morte pediram para que alguém verificasse os pertences dele.

Duas amigas da esposa se ajoelharam próximas do corpo. Uma tentava desvencilhar-se da poça de sangue, consolando a viúva. A outra começou a mexer no corpo diante do bombeiro que se mantém alheio ao acontecido.

Sim, ele não estava armado. Tirou dele o relógio de pulso e o celular. E dos bolsos da camisa rasgada e das calças jeans retirava algumas trouxinhas de maconha e papelotes de cocaína. E ia entregando ao seu filho que estava em pé junto dela. Ele ainda traficava.

O cão andava no meio da poça de sangue para lamber o rosto do dono, suas patas avermelharam -se. O corpo ainda estava quente mas o sangue não parava de escorrer pela calçada.

A polícia chegou e verificou o corpo. Começaram a fazer perguntas. Os tiros tinham sido certeiros.

Mandados.

A mulher tinha parado de chorar e pediu à amiga para fazerem uma oração.

– Você sabe a prece de Cáritas?

– Não sei de cor – disse a amiga mais preocupada com o sangue diante de suas pernas.

– Então repete comigo. O mundo está muito violento. Meu marido foi assassinado num assalto.

Ninguém ouviu a prece pois todos conversavam entre si.

Os filhos chegaram. A mocinha queria tirar a mãe do local. O filho só observava.

Começou a chover fininho e o frio assolava aquela noite, mas o corpo ainda estava quente.

O filho conversou com os policiais, disse que o pai estava se redimindo.

Por último chegou o cunhado, que também tentou retirar a irmã de cima do corpo. Recém saído da prisão queria levá-la para casa, deixá-la em segurança.

Aos poucos a pequena multidão foi se dispersando. Os bombeiros foram embora, teria que esperar o rabecão para levar o corpo e isto ia levar horas.

A filha conseguiu convencer a mãe a sair dali, voltar para casa, a poucos metros do ocorrido. A padaria fechou. O homem da carrocinha de cachorro quente também foi embora.

O corpo estava coberto com um saco preto, começava a ficar gelado e rígido. A poça de sangue misturava-se à chuva. O cão também foi levado para casa.

Apenas o filho ficou observando de forma silenciosa. Talvez em sua mente questionava quem poderia mandar matar o pai. Nunca ninguém saberia? Ele iria descobrir.

E ainda chovia fininho quando o cunhado colocou uma vela acesa perto do corpo. O beijo de Judas. Ninguém percebeu. E a vela não queima nem a metade tombando por cima da poça de sangue.

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