Em entrevista à reportagem, Caio Blat contou como havia sido estressante a gravação do desfecho da novela Império. A revelação da identidade do personagem que estava por trás de todas as maquinações na trama de Aguinaldo Silva. Uma noturna, Caio e Othon Bastos. A cena tinha muitos diálogos – e ação física. Caio, que admira Othon – “Um gênio!” -, podia estar cansado, mas também estava feliz de estar ali com uma de suas referências na arte de representação no País. Agora, é o repórter que está frente a frente com Othon Bastos, num set de filmagem, no Rio. Ele chega sorridente, senta-se, tira o boné e. . Ops!
Por um desses mistérios de que são capazes os atores, Othon ‘está’ Tancredo Neves. A semelhança impressiona. “Você acha?”, ele pergunta. Othon filma O Paciente, e o longa de Sérgio Rezende é sobre a agonia do presidente que não foi. O cineasta baseou-se no livro O Paciente – O Caso Tancredo Neves, de Luís Mir. Tancredo, o conciliador, construiu a passagem do regime militar para a democracia no Brasil. Foi eleito no Colégio Eleitoral, pois não havia diretas, mas nunca tomou posse. A tragédia brasileira. Às vésperas de ser empossado, Tancredo sentiu-se mal, foi levado ao hospital em Brasília e aí se iniciou uma série de procedimentos que o levou a morrer, ao cabo de 36 dias, em outro hospital, em São Paulo.
“Tancredo?” Othon Bastos já havia trabalhado em filmes de Sérgio Rezende e, em Mauá, foi o antagonista de Paulo Betti, que fazia o protagonista. “O Sérgio me mandou o roteiro, queria que eu lesse. Pensei que faria um dos médicos, mas aí ele me disse o que estava pensando. Tancredo, eu? Ele me perguntou se teria problema em raspar parcialmente o cabelo, e o problema, claro, não era esse. O problema era me investir dessa figura trágica.
Tancredo faz parte do nosso imaginário, do meu. Mas, depois de ler, pesquisar, fui percebendo a enormidade da tragédia. Tenho a impressão que esse homem se preparou a vida toda para ser presidente do Brasil. Chegou pertinho, e no último momento foi traído por seu corpo.”
Nesse dia, em especial, no set montado na Universidade Santa Úrsula, em Botafogo, Rezende vai filmar o começo de tudo. Tancredo sente-se mal, é levado ao Hospital de Base. Tenta convencer os médicos de que está bem. Diz que tomará posse e depois voltará ao hospital e poderá ser operado. Os médicos o convencem de que não há tempo. “Tancredo queria ser presidente, mas não creio que sua preocupação fosse pessoal. Era com o Brasil. Ele temia que os militares não empossassem seu vice, José Sarney, a quem consideravam um traidor. O último presidente militar, o (João) Figueiredo, respeitava, ou aceitava, o Tancredo, mas dizia que não ia apertar a mão do Sarney. E o Tancredo temia por isso.”
O protagonista de O Paciente passa boa parte do tempo deitado, sendo operado, em recuperação. Delira, e numa dessas cenas vê-se diante da rampa do Palácio do Planalto. “É muito forte, porque ele não consegue subir. As pernas paralisam. Outro dia, fiquei 12 horas deitado, de braços abertos. A equipe toda, o Sérgio ficavam ao redor, preocupados, mas faz parte. Ajuda a internalizar o personagem. E o Tancredo tinha pequenos gestos, uma maneira de passar o dedo na boca, que fui absorvendo e já saem ao natural.” Othon Bastos é um ator do ‘método’? Vive Tancredo 24 horas? “Eu, não! Não conseguiria.
Crio o personagem, mas tenho de manter certa distância.” E o repórter percebe isso. Tem atores que precisam se concentrar no set. ‘Entrar’ no personagem. Em alguns, esse processo é tão intenso que vira folclórico. Irandhir Santos, por exemplo. A garota da produção vem dizer que Othon precisa ir para a maquiagem. Ele faz um gesto vago com a mão, meio despreocupado. Segue falando.
Por que um filme sobre Tancredo, justo neste momento? “Eu acho que tem tudo a ver, e temos conversado muito, Sérgio (Rezende) e eu. O Brasil está tão polarizado, dividido, que o que falta é um Tancredo, com seu discurso moderado, conciliador.” O diretor, inclusive, esclarece que é sua intenção lançar o filme no ano que vem – um ano eleitoral – como contribuição para o debate. “E você vai ver a importância da Risoleta no filme. Esther Góes está fazendo lindamente”, informa Othon Bastos. Risoleta Neves, a mulher de Tancredo, era uma aristocrata mineira. Nunca se envolveu com a politicagem de Brasília, mas esteve firme com o marido na campanha do Colégio Eleitoral. “E, durante toda a fase da hospitalização, ela assumiu o comando. As mulheres do Sérgio sempre são fortes”, comenta Othon. Esther Góes vem conversar com o repórter. O tailleur discreto, o penteado, a maquiagem. Esther carrega uma pasta. Mostra fotos de Risoleta, do casal. A semelhança salta aos olhos. E a produtora, Marisa Leão, que faz seu décimo filme com Rezende, o marido – “Fala sério, eram outros tempos. Havia elegância, classe. Hoje em dia está tudo muito vulgar.”
O filme é sobre o casal, sobre Tancredo e os médicos. Curioso – se Othon foi antagonista de Paulo Betti em Mauá, Betti, como médico, faz agora o antagonista de Othon/Tancredo. Mas não foi de caso pensado. A morte no fim do caminho. A tragédia brasileira – o que leva aos grandes diretores que esculpiram a persona de Othon Bastos no cinema. Glauber Rocha, dois filmes, Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Leon Hirszman, São Bernardo. Ambos morreram cedo. “Fazem uma falta danada. Não para mim, para o Brasil. Já pensou? O Brasil desse jeito seria matéria de muita reflexão para Glauber, Leon.” O assunto volta ao ‘método’. Othon imortalizou-se no cinema como Corisco. “Mas eu não era Corisco, nunca fui. Aquilo foi uma criação magistral do Glauber, que tirou o Corisco de dentro de mim. Glauber era um barroco genial. Gostava do excesso. Eu rodopiava e ele pedia mais. Aquilo saiu da cabeça dele.”