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Santo Anísio

Tão simpático, tão fofinho, tão carismático; nem parece que mandava matar gente

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Seu Anísio, homem miúdo, solitário, econômico nos movimentos e nas palavras, morador da casa mais ao fundo, faleceu no início de 2018. Parece que foi de alguma doença de velho. Mamãe me disse que precisávamos prestar a última homenagem ao sujeito, que, na verdade, creio que nem sequer considerava a minha existência. Mesmo assim, tratei de me vestir adequadamente, pois não queria arrumar pendenga justamente com aquela que sempre me deu guarida quando ia com minhas amigas para as baladas.

A cerimônia, para meu espanto, estava lotada, como se o defunto fosse político ou artista de renome. E eu que sempre o imaginei mais um dos tantos desimportantes deste mundo. Ademais, os presentes pareciam sinceramente comovidos. Isso me deixou encucada, ou melhor, perplexa. Afinal, será que eu havia perdido alguma coisa naqueles meus quase 18 anos de praticamente nenhuma convivência com o dito cujo, que, nas raras vezes que passamos um pelo outro, jamais trocamos olhares?

Enquanto esperava na fila ao lado de mamãe para dar o último adeus ao morto, ouvi os mais próximos exaltando suas qualidades. De tanto ouvi-las, comecei a acreditar em todas e até de outras que nem cheguei a escutar. Era nítido que meu jeito adolescente de enxergar o mundo havia me cegado de tamanha generosidade depositada em apenas um ser. Nessa altura, passei a crer que seu Anísio era um santo ou algo próximo a isso.

Assim que chegou a nossa vez de prestar as últimas homenagens ao, naquele instante, no meu entendimento, Santo Anísio, eis que tive certeza de que aquela face arredondada só poderia ter pertencido a um indivíduo que apenas havia feito o bem para o próximo. Emocionada que fiquei, algumas lágrimas verdadeiras escorreram pelo meu rosto, o que fez minha mãe me confortar com um abraço carinhoso.

— Mamãe, por que Deus levou justamente o seu Anísio? Tanta gente má neste mundo, e Ele foi escolher logo o seu Anísio.

— Marília, minha filha, Deus escolheu o seu Anísio justamente por isso. Muitos serão chamados, mas poucos serão escolhidos.

Quase no final da tarde, todos os devotos de Santo Anísio, em procissão, se dirigiram até o local onde foi depositado o caixão. Discursos, últimos lamentos, salvas de palmas, gente desesperada pela partida tão cedo, apesar dos pouco mais de 90 anos do falecido, centenas de flores, a última pá de cal foi depositada na cova. Abaixam-se as cortinas, a plateia voltou para seus lares.

Fiquei tão impressionada com aquela coisa toda, que pedi para minha mãe emoldurar uma fotografia do nosso querido e amado Santo Anísio, que foi depositada na cabeceira do meu quarto. Todas as noites, antes de dormir, acendia uma vela para ele, que parecia retribuir com um bondoso sorriso, muito mais sincero do que o da Monalisa.

Os anos seguintes voaram. Passei no vestibular para engenharia civil, consegui me destacar entre os alunos e me formei com méritos. Julgava que todas aquelas vitórias eram, de certo modo, provenientes de milagres de Santo Anísio. Mas foi aí que, pouco depois de conseguir um bom emprego numa construtora, uma colega de profissão foi almoçar na nossa casa.

Empadão de frango, especialidade da minha mãe, fez sucesso. Tanto é que Rosilene, a minha amiga, repetiu com gosto. Depois veio a sobremesa e, então, fomos para o meu quarto. Assim que entramos, Rosilene notou a fotografia de Santo Anísio sobre a mesinha ao lado da cama.

— Seu Anísio!

— Sim. Você o conheceu?

— E quem não conheceu o seu Anísio? É claro que o conheci.

— Ele morava aqui no final da rua.

— Sei disso. Às vezes, meus pais iam visitá-lo.

— Sério?

— Sério.

— Hum. Não sabia que seus pais eram amigos dele.

— Na verdade, o seu Anísio era padrinho da minha mãe.

— Ah, não acredito! Sério mesmo?

— Sério.

— E como ele era?

— Ah, o seu Anísio era tão simpático, tão fofinho, tão carismático. Nem parece que mandava matar gente.

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Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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