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Tempo corre até a hora de ser feliz sem medo

Não sei como foi terminar nisso. Tudo começou quando ganhei um bleizer vermelho de minha mãe quando meu filho frequentava a quarta série do Ensino Fundamental. Lã de qualidade, modelo clássico, botões dourados no punho.

Não! Pensando bem a história começa antes do bleizer vermelho. Valham-me os fatos antecedentes e a memória que, com a idade, vai ficando cada vez mais caprichosa.

Durante nossa infância, nossa mãe costumava nos levar nas lojas a que tinha acesso financeiro e fazia as compras necessárias nas cores e modelos que escolhíamos.

Minha mãe gostava de nos vestir iguais. Quando o par de roupas ficava pequeno, a minha era doada e eu herdava a da irmã. Hoje calculo que tive mais roupas do que ela, na nossa infância. Naquele período, eu vivia “o mito da igualdade”, compondo com minha irmã uma sina de gêmeas diferenciadas pela altura da diferença de dois anos de idade.

Minha mãe não tinha grandes problemas em monitorar a atividade da vida diária relativa a nos vestir. Não lembro de minha mãe praticar despotismos em relação ao uso de minhas roupas. Até onde recordo, eu pegava as roupas que devia pegar e as usava feliz nas brincadeiras, nas danças e cantos…

Entretanto tenho uma lembrança teimosa de quando era ainda uma menina de seis ou sete anos. Trata-se de uma cena que destoa do referido padrão da aquisição de roupas. Minha mãe e eu estávamos numa loja de roupas no centrinho comercial próximo à nossa residência. Ela queria que eu comprasse um casaco vermelho. Insistia. Olhei. Experimentei. Avaliei que era bonito. Mas disse que não queria. Ela continuava insistindo. Então argumentei que gostava do casaco cinza que já tinha. Minha mãe acatou, finalmente.

Os anos se passaram. Minha mãe continuou generosa. Num certo dia sinalizou que queria me dar um bleizer novo e eu, finalmente, escolhi o vermelho. Guardei-o só para sair.

Décadas se passaram. Partiu minha mãe. Anos se passaram. Partiu a irmã. Anos se passaram. Fiquei viúva.

Passado o luto, retornei ao casaco vermelho. Eram tempos de divisões de cores: de um lado os verde-amarelo e de outro os de vermelho, na ida às urnas amaldiçoadas pelos crentes na ditadura.

Nesses tempos bipolares, fui a lugares costumeiros com aquele antigo bleizer vermelho que nunca provocara reações nos demais. Mas constatei que ele deixara de ser inofensivo, passara a ser um grito estridente, uma declaração de lado, uma resposta à pesquisa de intenção de voto. Atraía olhares furiosos ou deslumbrados por ver a velha senhora se posicionando com arroubos de juventude.

Hoje revejo, com gratidão, a cena de minha mãe insistindo para que eu aceitasse a compra do casaco vermelho que recusei, na infância. Entendo que ela queria que eu fosse mais impetuosa, mais desejosa, mais alegre… Que vivesse intensamente…

Sem medo de ser feliz!

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