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Vozes

Tempo, pantera impiedosa, leva Roberto e seus escritos

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Roberto estava na faixa dos 70 anos. Jornalista aposentado, divorciado, sem filhos, vivia com dois cachorros numa casinha na serra fluminense. Parafraseando Drummond de Andrade, teve poucos, raros amigos, e afastou-se deles quando trocou as praias cariocas pelas montanhas do interior. Seu dia a dia variava pouco: passeava com os cães, ouvia música, via filmes e séries na televisão e lia poesia, gostava especialmente de Fernando Pessoa e Drummond. Também escrevia poemas que postava no Facebook. Tinha alguma reputação como poeta de rede social e pensava, num futuro nebuloso, em reunir suas melhores produções num livro.

Mas o tempo é uma pantera impiedosa. Os primeiros sintomas surgiram quando Roberto estava com 77 anos. De um dia para outro, não conseguia escrever mais poemas. Não razoáveis, pelo menos. Com grande esforço, cometia versinhos na linha amor-flor-dor, o que jamais fizera. Antes, rimava amor-estupor, por exemplo, conduzindo os leitores por trilhas perturbadoras e inusitadas. E mais, passou a considerar obras-primas os poeminhas chinfrins dessa fase; ficava indignado quando estes não recebiam aplausos generalizados. Roberto, que sempre escrevera por prazer, agora exigia reconhecimento. Quanto mais estridente, melhor.

Logo em seguida, a música o abandonou. Até ouvia suas canções favoritas, mas viraram musak, som de elevador. As composições eram as mesmas, ele é que perdera o dom de emocionar-se com elas. A mesma coisa aconteceu com suas séries de televisão, passou a vê-las mecanicamente, a ponto de esquecer a trama de um episódio para outro. E nada de enredos instigantes, aderiu com armas e bagagens aos filmes de porrada e assassinatos em série, quanto mais violentos, melhor. Ainda mais grave, passou a ter encontros sem emoção com os seus amados poetas maiores (jamais gostara de poesia das redes sociais, exceto da sua própria). Antes, mergulhava no poema, detinha-se em versos marcantes, murmurava trechos particularmente melodiosos ou comoventes, indagava-se por que o autor havia usado aquela imagem e não outra, sugeria construções alternativas. Agora, os poemas de Pessoa, Drummond, Bandeira e outros escritores favoritos transformaram-se em musak literário, algo a ser consumido para passar o tempo.

Vieram então as vozes. Primeiro, sons inumanos: latidos. Começaram como brincadeira, quando os cachorros latiam, ele latia junto, e morria de rir com os olhares desconfiados dos animais. Mas logo começou a tomar a iniciativa, a latir por conta própria, mesmo na ausência de seus dois companheiros. E então passou a berrar dentro de casa. De início, numa espécie de kiai das artes marciais, um “ainda estou vivo”. Mais tarde, pela simples necessidade de ouvir uma voz humana que não viesse de um aparelho eletrônico. Mesmo que a voz emitisse um rosnado.

O sintoma seguinte foi o falar sozinho. Tinha esse hábito desde sempre – mas agora, batia longos papos consigo mesmo. Nesses monólogos/diálogos, alternava vozes de falsete ou muito graves e dava gargalhadas. O próximo passo foi fazer caretas, tendo como trilha sonora um discurso delirante pontilhado de latidos e rosnados. E assim continuou vivendo, sem ter consciência de que seu universo cultural se tornava a cada dia menor, mais precário e mais tosco.

Certo dia, porém, por um favor/castigo dos deuses – ou um rearranjo acidental de seus neurônios –, despertou com uma terrível lucidez. Terrível, porque percebeu, mortificado, como sua vida empobrecera, como as coisas que mais amava o haviam abandonado ou estavam abandonando – a música, os filmes e séries da TV, sua querida poesia. Recordou, com vergonha, os versinhos amor-flor-dor que escrevera nessa frase pouco exigente. Pior, viu que o próximo passo seria sair de casa rumo ao centro da cidade, fazendo caretas, gargalhando, latindo, rosnando e falando sozinho em vozes diferentes, de falsete ou muito graves, talvez sem notar as zombarias e olhares de piedade de todos os que o vissem ou escutassem. Era demais.

Com sua lucidez reencontrada, recordou os versos iniciais de uma canção de que sempre gostara, Charles, anjo 45, de Jorge Ben (antes de se chamar Jorge Benjor). Por algum motivo, sempre achara tristíssima aquela estrofe:

“Oba, oba, oba Charles/ Como é que é/ My friend Charles/ Como vão as coisas Charles…”

Pensou por um instante no personagem, misto de Robin Hood e dom Sebastião do morro, que um dia voltaria à companhia dos admiradores e amigos. Depois, entoou – com sua voz normal, não em falsete, não em um tom grave demais –, um quinto verso para a estrofe, criado na hora por ele:

“Hora de ir embora, Charles”.

Sabia que precisava aproveitar a onda de lucidez, que poderia se dissipar a qualquer momento. Assim, colocou os cachorros para fora da casa, fechou bem as portas e janelas e abriu o gás do fogão. E então, garantia nunca é demais, foi buscar o isqueiro, guardara-o na gaveta das meias depois que parou com o cigarro, sabia que ele ainda lhe seria útil.

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