José Escarlate
De cara meio fechada, Rivadávia de Souza entra na redação. Diz quer vai precisar sair e orienta a todos dizendo que eu ocuparia a sua mesa, para qualquer eventualidade. Não disse a razão, mas reafirmou a todos: a Voz do Brasil sairia sozinha. “O Escarlate vai comandar a Voz do Brasil. Sem medo e sem erro” – repetiu.
Abriu a última gaveta da sua mesa de aço e, virando-se para a turma toda, principalmente o Brandenburgo, apontou: “Aqui tem um monte de “calhaus”, se necessário for”. “Calhaus”, no jargão jornalístico, são matérias guardadas que dificilmente perdem a atualidade e podem ser usadas em qualquer ocasião, no caso de faltar matéria. É uma espécie de matéria sem prazo de validade.
Dito isso, entrou na sala do Madeira Bastos, que era ligada à redação, conversou alguma coisa rapidamente com ele e saiu. Nessa época a Agência Nacional funcionava no bloco 3 da Esplanada dos Ministérios.
Nós não sabíamos o que estaria por vir. Seu Brandi, o mais experiente de todos, certamente, desconfiava de alguma coisa. Mas também ficou moita. O trabalho de preparação da Voz do Brasil estava sendo tocado. As matérias vinham para as minhas mãos já datilografadas pelo Arnaldo e pelo “Tavinho” e escritas pelo Pedro, pelo Moacyr e pelo seu Brandi, que fazia uma breve revisão. Da minha parte, eu lia e dava uma editada final no material, colocando cada notícia na pasta própria.
A Voz do Brasil era preparada em blocos, a partir de Brasília, com o seu Jornal Nacional, cuja marca registrada pertence à Agência Nacional. Entrava o noticiário da presidência da República, seguindo-se o Ministério da Justiça e depois notícias das outras Pastas. A parte referente ao Congresso Nacional entraria somente depois do trigésimo minuto, quando o áudio era passado para a responsabilidade das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado Federal.
O link da transmissão era comandado pela Agência Nacional, que repassaria esse áudio ao Congresso. Na técnica, William Araújo, o José Pedro Costa, o Agostinho Meiçó, o Aramis, o José Gemmal e o Eliezer. Uma hora antes da Voz entrar no ar, cerca de seis horas da tarde, toca o magneto do Rio , na mesa do seu Riva. Era um canal de voz ponto a ponto, privativo, ligando a Agência Rio com a Agência Brasília. Atendí meio assustado e, do outro lado da linha o Arnaldo Assis, diretor de Jornalismo, me disse, pausadamente.
“Escarlate, o Rivadávia já falou comigo e tenho algumas instruções para você seguí-las religiosamente. Avise a técnica para não passar o áudio da Voz do Brasil para o Congresso Nacional, até ordem em contrário”.
Fui até lá, reuni o grupo e repassei as instruções do Assis. Para evitar problemas maiores, convoquei mais um locutor, no caso de alguma emergência. Era o Rolando Candiano, mais conhecido como “Jatobazinho”, pela semelhança de sua voz com a do veterano Luiz Jatobá, que foi o primeiro locutor oficial da Voz. Os textos estavam praticamente prontos e liberados, até com alguma sobra, com o monte de “calhaus”.
A redação era um silêncio só. Ninguém sabia o que poderia vir a caminho. Procurava me mostrar calmo, para não influenciar os companheiros, mas meu estado de nervos era absurdo. Fumava um cigarro atrás do outro. Na redação, só o Pedro Mendes e o Brandenburgo não fumavam.
Não sabíamos o que viria pela frente. Exceto o Brandenburgo, que trazia informações da radio-escuta que fazia na Radio Nacional. Mas ficou moita. Até que a contagem regressiva, com – o toque de cinco segundos – colocou a Voz do Brasil no ar, liberando a nossa adrenalina.
O coração batia forte. Parecia querer sair pela boca. Na redação, uns preparavam originais, enquanto outros se entreolhavam à espera de orientação.
“Em Brasília, 19 horas’. Era a voz grave do locutor oficial, Meira Filho, anunciando “A Voz do Brasil, desta sexta-feira, 13 de dezembro de 1968”.
Quinze minutos depois volta a ligar o Assis, pelo magneto. Parecia nervoso e pergunta: “Está tudo bem, Escarlate ?” E repetiu: “Não faça a passagem para o Congresso de forma alguma. Aguarde orientação” – desligando.
Pedi ao pessoal da redação para continuar a preparar matérias. Se a Voz do Brasil tivesse música, seria mais fácil, pensei. E fui tocando o barco.
Eram 19,30 horas, quando a Voz estaria sendo repassada ao Congresso. A técnica da Agência segurou a linha. O magneto da Câmara passou a tocar desesperadamente, mas ninguém da Agência atendia. O Meira Filho e o Rolando terminaram de ler os textos e passaram para os “calhaus”.
Faltavam quinze minutos para às 20 horas e o monte de “calhaus” diminuia cada vez mais. Nosso estoque de notícias havia acabado. Lembrei o tempo de garoto, quando pegava um jornal ou revista e começava a brincar de locutor de rádio. E foi o que fiz com o Meira Filho, que começou a rir. Livretos institucionais de ministérios eram marcados com caneta em pequenos trechos, sendo repassados para o Meira. Os livretos acabaram e eu parti para a lista telefônica de Brasília.
Faltando três minutos para as 20 horas, o Assis mandou pelo telex ponto-a-ponto uma vinheta para ser lida pelo Meira, jogando a transmissão para o Rio, sem a passagem pelo Congresso.
Dizia: “A Agência Nacional passa a transmitir, neste momento, diretamente do Salão de Despachos, no segundo andar do Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro”. Entrava uma vinheta musical e, do outro lado, a voz do locutor oficial, Alberto Curi.
Após a introdução feita pelo então Ministro da Justiça, Gama e Silva, Alberto Curi anunciou que o Governo Federal acabara de editar o texto do Ato Institucional nr. 5 e, através do Ato Complementar 13, decretando o recesso do Congresso Nacional, por prazo indeterminado.
No bojo do AI 5 foram cassados os mandatos de 41 pessoas, entre deputados federais, senadores, políticos, jornalistas e empresários. Alberto Curi passou, então, a ler pausadamente o nome de todos os cassados. Previa a suspensão dos direitos políticos e cassação do privilégio de foro por prerrogativa de função. Foi suspenso também o direito de votar e ser votado em eleições sindicais.
O AI-5 suspendeu a concessão de habeas corpus nos casos de crimes políticos incursos na segurança nacional, na ordem econômica e na economia popular.
Instituía o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido ilicitamente no cargo ou função pública, além de uma série de outras providências ampliando os poderes discricionários do governo.
A partir daquele momento, estava instituída oficialmente a censura à imprensa.