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Teste do olhinho nem sempre aponta doenças oculares em bebês

Foto/Divulgação

O teste do olhinho tradicional se popularizou no Brasil, após problemas de visão em bebês se associarem à falta de um diagnóstico ainda na maternidade. No entanto, uma pesquisa concluiu que essa técnica, apesar de importante e obrigatória, não basta para combater a cegueira infantil, sobretudo em crianças com microcefalia.

Segundo a oftalmologista e autora do estudo, Márcia Tartarela, o exame detecta distúrbios de opacidade na visão do bebê por meio de um reflexo vermelho, mas não identifica patologias de fundo de olho associados à retina – área responsável pela formação de imagens, de onde o nervo óptico capta informações.

“Hemorragias, toxoplasmose e tumores oculares em estágio inicial são alguns dos casos que passam batido pelo teste convencional do olhinho”, explica. A avaliação não detecta cerca de 20 doenças, e isso se dá porque a luz avermelhada não chega às profundidades para encontrar mudanças.

Os casos se agravam ainda mais ao relacioná-los com a zika congênita – condição que aumentou os casos de atrofia cerebral no País. De acordo com a médica, esse vírus se atrai pelo sistema nervoso, o que faz com que o bebê tenha a retina atacada, já que esta região é uma continuação do cérebro.

Márcia constatou vantagens do teste de olhinho digital fazendo o procedimento em 70 crianças de um a quatro meses com microcefalia e filhas de mulheres portadoras da epidemia. Em um primeiro momento, ela não viu alterações oculares, mas, após submeter os pequenos ao teste digital, identificou que 25 apresentaram alterações. Desses, 18 tinham problemas ligados ao nervo óptico e à retina; e sete apresentavam estrabismo (olhos tortos) e nistagmo (quando o olho treme involuntariamente).

A partir desses números, a especialista concluiu que o segundo método é mais preciso e ideal para a população. Feito por um aparelho chamado retcam, é por meio dele que se tem acesso ao diagnóstico precoce para diminuir o número de cegueiras tratáveis, segundo Márcia.

Segundo a ONG Juntos Pela Visão Infantil, o mau desenvolvimento da retina em bebês prematuros é a principal causa de cegueira em crianças, e só é possível detectar esse problema com o exame digital.
Segundo a ONG Juntos Pela Visão Infantil, o mau desenvolvimento da retina em bebês prematuros é a principal causa de cegueira em crianças, e só é possível detectar esse problema com o exame digital. Foto: Pixabay

A pesquisadora ressalta que esse dispositivo não se aplica apenas às crianças infectadas pelo zika, mas a todas, a fim de identificar a má formação no nervo óptico. Além disso, ela alerta que sua pesquisa abre precedente para se fazer exames de maiores proporções, com o objetivo de descobrir possíveis lesões de fundo de olho comuns ou até hoje não notificadas por falta de exames.

Apesar dos benefícios do retcam, ele não é obrigatório em nenhum Estado brasileiro e sequer consta no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Fora isso, o Ministério da Saúde informou ao E+ que a Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias ao SUS (Conitec) não recebeu, até a data de publicação desta reportagem, um pedido para avaliação do instrumento e não está com processo aberto no órgão do governo.

Segundo Márcia, uma das justificativas para isso é o valor do aparelho, estimado em R$ 390 mil. Esse custo torna a inovação muito mais cara aos cofres públicos do que o oftalmoscópio direto (R$ 475 a R$ 4,8 mil) – usado para oteste do olhinho convencional.

Para se ter uma ideia, uma compra do equipamento de última geração equivale a até 800 encomendas do mais simples.

A médica expõe, também, que a escassez dessa tecnologia representa um entrave no combate à cegueira infantil no Brasil. Isso porque só em São Paulo foram registrados 133 casos do zika entre janeiro e quatro de dezembro deste ano, sendo que seis são em gestantes. Além disso, um relatório do Ministério da Saúde, divulgado neste mês, aponta que 250 cidades paulistas estão em situação de alerta ou risco para dengue, chikungunya e zika – sendo esse último um alerta para as chances de contaminação em fetos.

Na região sudeste de São Paulo, o maior número de criadouros foi encontrado em domicílio, caracterizados por vasos com água, pratos e garrafas retornáveis
Na região sudeste de São Paulo, o maior número de criadouros foi encontrado em domicílio, caracterizados por vasos com água, pratos e garrafas retornáveis Foto: AP Photo/Felipe Dana

De acordo com a pasta, foram notificados 3.226 casos de microcefalia no Brasil, e todas crianças foram encaminhadas para algum tipo de tratamento, mas nenhuma passou pelo teste do olhinho digital.

Diante do agravante, que afeta o sistema nervoso, a campanha Juntos pela Visão Infantil visa a incentivar os familiares a fazerem não só o teste convencional, mas também o digital. O movimento tem 13 instituições parceiras, sendo sete delas em São Paulo – quatro públicas e três particulares.

Além disso, está em trâmite desde 24 de novembro deste ano, na Assembleia Legislativa, o projeto de lei nº 671, da deputada Clélia Gomes (Avante), que consiste na criação do Centro de Referência de Atendimento Especializado aos Recém-Nascidos e às Crianças Portadoras da Microcefalia.

‘Será um adulto a menos na sociedade’
Os pacientes analisados na pesquisa de Márcia têm, em média, três meses de idade, o que preocupa a especialista. “Esse tempo é o fim do período crítico de desenvolvimento visual do ser humano, que pode ir até os quatro meses de vida”, alerta. “A criança com lesão ocular tem de ser tratada antes de terminar essa fase”, pontua.

Se isso não acontecer, a médica alerta que o bebê – possuindo ou não o zika – terá baixa visão e pode sofrer, em média, um ano de atraso neuropsicomotor em relação a outro normal. “Ele vai demorar muito para andar e engatinhar, não terá firmeza na cabeça e enfrentará problemas cognitivos e intelectuais”, diz.

Assim, se uma enfermo dar esses sinais aos oito meses, um neurologista ou pediatra podem não identificar a razão do problema. Mas, ao consultar um oftalmologista, pode ser diagnosticada com uma catarata, por exemplo. “Mesmo após ser operada, ela vai recuperar pouco a visão, porque passou do período crítico”, explica.

Problemas oculares podem perdurar em outras fases da vida se não forem resolvidos no período recomendado pela medicina.
Problemas oculares podem perdurar em outras fases da vida se não forem resolvidos no período recomendado pela medicina. Foto: Pixabay

Além disso, ela conta que a criança corre o risco de ficar socialmente isolada, porque não saberá responder aos estímulos de outras em sua faixa etária. “Será um adulto a menos na sociedade, já que vai precisar de alguém ao lado dela o tempo todo, inclusive para levá-la aos grupos de reabilitação visual e motora”, complementa. Segundo Márcia, esse fato se justifica ao se concluir que 80% do desenvolvimento global na infância depende da visão.

A campanha Juntos Pela Visão Infantil alerta que o número de distúrbios oculares é muito maior do que o relacionado a outras partes do corpo nos pequenos. No teste do pezinho, por exemplo, a prevalência de enfermidades é de uma a cada 15 mil crianças. Já no teste do olhinho, essa proporção é de uma a cada 70 crianças, o que significa que esse público é muito suscetível a ser prejudicado no futuro por não ter tido uma análise óptica completa.

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