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Tio de Damares frauda documento de posse de terra

O pastor e ex-deputado federal Josué Bengtson, tio da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), cria gado em 6.866,52 hectares dentro de terras pertencentes à União — quase o dobro do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. Desse total, 4.932,39 hectares ou 72% da propriedade estão em área pertencente à gleba federal Pau de Remo, destinada desde 2015 à reforma agrária. Uma parcela desse território teve um título de posse emitido pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa). De Olho nos Ruralistas constatou que esse documento tem origem fraudulenta. A fazenda também é vizinha à Terra Indígena Alto Rio Guamá, do povo Tembé, que sofre com a invasão de madeireiros a partir da Pau de Remo e de outra gleba vizinha, a Cidapar.

Josué Bengtson voltou ao noticiário no fim de maio, quando a Polícia Federal apreendeu 290 quilos de skunk, um tipo mais forte de maconha, em um avião pertencente à Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), fundada e liderada pelo tio de Damares. A apreensão ocorreu no dia 27, no Aeroporto Internacional de Belém. Damares foi destaque na terça-feira (11) em reportagem do Estadão, que aponta a participação da ex-ministra no desvio de R$ 2,5 milhões em verbas públicas que seriam destinadas a duas ONGs. O valor foi parar em empresas de fachada ligadas ao ex-deputado evangélico Professor Joziel (Patriotas-RJ), um aliado político de Damares.

Uma parcela da propriedade de Bengtson, de 1.821 hectares, tem título definitivo datado de 1961, período anterior à análise do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), realizada em 1982, que definiu as terras como públicas. O título provisório, de 4 de junho de 2003, referente a 2.492,12 hectares, teve origem fraudulenta. O crime fundiário é apontado pelo Incra, em ofício datado de 2019, a partir de avaliação apresentada pelo Iterpa:

— Com base na análise precedida pela Gerência de Cartografia deste instituto, o Título Provisório nº 20 está localizado a distância de 27,390 km do perímetro do imóvel ‘Fazenda Camará’ (sic), não havendo, portanto, correspondência entre o TP e a área objeto do pedido de informação feito por essa Autarquia Federal, conforme mapa e laudo técnicos que seguem anexos a esse expediente.

Isto é, o título provisório apresentado por Bengtson para comprovar sua posse dentro da Gleba Pau de Remo está localizado em outra área, longe dali. “Conclui-se que, na verdade, o TP expedido encontra-se inserido nos limites do município de Cachoeira do Piriá e não de Santa Luzia do Pará (área ocupada), totalmente inserido dentro do assentamento do Incra, denominado PA Cidapar 1ª Parte”, finaliza o ofício, que classifica o título do tio de Damares como “sem valor legal”.

Em resposta à reportagem, Marcos Bengtson, filho de Josué Bengtson, informou que, ao adquirir as terras, a família não tinha conhecimento de se tratar de uma área federal. “Acreditamos que nem o próprio Iterpa tinha essa informação, seja por falta de recursos tecnológicos na época, ou pela cartografia muito precária existente”, justifica, em texto enviado por e-mail.

Com relação ao título provisório, ele alega ser proveniente de erro do Iterpa, que teria reconhecido o equívoco em meados de 2014. Entretanto, a análise do Incra que aponta a fraude é posterior a essa data. Confira aqui a íntegra da resposta de Marcos.

O imóvel da família Bengtson é utilizado para criação extensiva de gado. Segundo dados obtidos pela plataforma Mapbiomas, referentes a 2021, 62% da área da Fazenda Cambará encontra-se desmatada.

Em 2007, a Fazenda Cambará foi ocupada pela primeira vez por agricultores vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se organizaram há mais de uma década no acampamento Quintino Lira, onde plantam grãos, legumes e frutas e fazem a extração do açaí e do murumuru. Em 2009, os camponeses foram despejados em uma ação policial, retornando no ano seguinte.

O político e pastor evangélico Josué Bengtson possui fazenda grilada no Pará. (Foto: Divulgação/IEQ)
Após a vistoria realizada pelo Incra, em 2015, a autarquia deu parecer favorável à criação do assentamento. Quase dez anos depois da análise, os acampados ainda aguardam pela posse da terra. Isso porque a batalha judicial entre o Incra e a família Bengtson atravanca a regulamentação da área, sujeitando os camponeses a uma rotina de ameaças por parte dos religiosos da Igreja do Evangelho Quadrangular.

A lavoura do acampamento fica próxima das pastagens onde está o gado da fazenda, em lotes separados por uma cerca. Por mais de uma vez, os animais atravessaram a barreira e destruíram os roçados. Em janeiro de 2021, um avião sobrevoou a área dos sem-terra e pulverizou agrotóxicos, prejudicando as plantações e deixando as famílias sem alimento e fonte de renda. “Tudo o que a gente tinha perdemos”, conta João Galdino, um dos líderes do acampamento. “Acabou contudo, roça, nossos pés de planta, açaizeiros… Estamos construindo de novo”. Segundo ele, as ameaças só cessaram em 2022.

Esse não foi o primeiro caso de violência vivenciado por Galdino. Em 2010, ele e José Valmeristo de Souza, o Caribé, moradores do acampamento, foram pegos em uma emboscada. Galdino conseguiu fugir, mas Caribé foi assassinado a tiros. As investigações apontaram Marcos Bengtson, filho de Josué e administrador da Fazenda Cambará, como mandante do crime. O caso tramita na justiça até hoje, à espera do Tribunal do Júri.

Na resposta enviada à reportagem, Marcos alega inocência, afirma que colaborou com as investigações e que espera pelo desfecho do caso. Ele também afirma que, um ano antes do assassinato de Caribé, um funcionário da fazenda chamado Darielson — ele não apontou sobrenome — foi morto por membros do acampamento e que “a morte dele não ganhou manchetes nos jornais”.

“Minha família e eu não compactuamos com nenhum tipo de violência e lamentamos a perda precoce de duas vidas, pois toda vida é muito importante”, afirma. Marcos também acusa os sem-terra de ameaças aos funcionários da fazenda, roubo de gado, invasão da área de proteção ambiental para derrubada de árvores e para provocar queimadas.

De acordo com a promotora de Justiça Agrária Ione Nakamura, do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), é necessária uma decisão judicial definitiva para as terras. O Incra não tomou todas, até o momento, as medidas administrativas necessárias para consolidar o assentamento. “É uma medida que seria importante para a pacificação daquela região”, avalia.

Entre os anos de 2009 e 2016, os moradores do acampamento registraram treze boletins de ocorrência de ameaças recebidas por parte dos funcionários da fazenda. Em outubro de 2015, dois jovens foram vítimas de uma emboscada: um deles levou um tiro de raspão e o outro foi ferido com coronhadas no rosto. Em abril de 2022, os acampados denunciaram o descumprimento a um acordo feito por meio da Vara Agrária de Castanhal para que houvesse o respeito em relação a área desafetada, conforme noticiado por este observatório: “Família dona do avião com maconha tem história de grilagem e assassinato de sem-terra“.

Como pastor e líder religioso, Josué esteve à frente do projeto de expansão da Igreja do Evangelho Quadrangular no Brasil a partir dos anos 60, sendo o responsável pela abertura de templos em diversas regiões do país. Em sua carreira religiosa, Damares atuou como pastora na igreja do tio.

No livro “Das tendas à Igreja do Evangelho Quadrangular: história da IEQ no Brasil”, de autoria de Jefferson Grijo, há um capítulo dedicado à jornada de Bengtson. Nascido em Getulina (SP), ele teria chegado ao Pará no início da década de 70, por conta própria, “obedecendo a um chamado e começando do zero”. Em 1999, foi eleito deputado federal pelo PTB. Nesse mesmo ano, Damares mudou-se para Brasília a convite do tio, para trabalhar em seu gabinete. Hoje, a IEQ do Pará é a maior do Brasil, com cerca de 4 mil pastores.

Em 2018, Josué foi condenado pela Justiça Federal à perda do mandato por enriquecimento ilícito. Ele fez parte de um esquema de desvio de recursos da saúde no Pará, conhecido como “máfia das ambulâncias”. Seus direitos políticos foram suspensos por oito anos. Segundo denúncias do Ministério Público Federal (MPF), o pastor direcionava verbas a municípios, onde licitações eram fraudadas e o dinheiro era depositado na conta dele e da igreja que comanda. Entre os municípios estava Santa Luzia do Pará, onde os pastores disputam terra com os camponeses.

Em 1998, quando iniciava na política eleitoral, Bengtson elegeu-se deputado federal, com um patrimônio de R$ 274 mil. Em 16 anos, o pastor setuplicou, ou seja, multiplicou por sete sua fortuna, chegando a R$ 2 milhões.

Tentando ocupar o lugar do pai condenado, Paulo Bengtson, filho mais novo de Josué, é pastor e foi eleito deputado federal em 2018 pelo PTB. Na época, foi financiado pelo próprio Bengtson. Em 2022, quando teve doação do seu irmão mais velhos Marcos, não conseguiu a reeleição e, atualmente, é secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia do Pará, no governo Helder Barbalho, do MDB.

Marcos também é pastor evangélico, mas não tem atuação política. No processo do homicídio de José Valmeristo Soares, ele é apontado administrador da Fazenda Cambará. Em uma rede social, ele informa ser “servo na empresa Jesus Cristo”.

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