Aquários artificiais
Toc. Toc. Toc. É preciso estar preparado para mergulhar no vasto oceano
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emEnquanto limpo o salão/refeitório da Casa Central, fixo o olhar no aquário imaginário que criei – terapia paupérrima de sobrevivência – e admiro os peixinhos no balé aquático de suas existências glub, glub. Mais que admirar: contemplo. Seres exóticos de rara beleza.
Deixo-me envolver pelo encanto e elegância de seus movimentos; a agilidade de uns, a calma de outros, em cores vivas e variadas. Permaneço absorto por alguns segundos. Eternos segundos. Viajo pelos bosques da imaginação. A harmonia das formas, os olhares hipnóticos sem pálpebras, a geometria dos movimentos, a biodiversidade de espécies, de gêneros e comportamentos. Habitantes de um espaço fechado, cada um a seu modo, executando a dança da vida.
Por mais que eu evite pensamentos transcendentais, esbarro na ideia dos sentidos de mundo como um magnífico caleidoscópio de seres e coisas e na possível existência de um “Ser organizador”. Talvez aquele que, em um dado espaço-tempo, dispôs a matéria e organizou aquilo a que chamamos natureza; e nela, os seres vivos e os inanimados.
Em meu aquário imaginário, como num filme mental, tudo parece fazer parte desta vertigem de imagens em perfeito sincronismo. O acaso não teria chances de compor tão bela harmonia. Na verdade, a vida é mesmo uma exata sinfonia.
Aqui fora do aquário, a realidade é outra. Algo distante e repleto de dúvidas humanas, mitigadas à exaustão. Um outro pensamento toma de assalto a minha cabeça:
“…e se os peixes apenas estiverem repetindo o ciclo, o movimento contínuo por não saberem -desconhecerem- outra forma de agir e de viver?”
Penso, então, em liberdade.
O que seria – fato concreto – certo? E o errado?
Talvez até mesmo a desarmonia seja um “estado de estar”, de caminhar na contramão do real e da lógica da maioria. Explico: antes de apenas seguir o ciclo (como os peixes em meu aquário imaginário), reflito sobre ter o direito e o poder de escolher pela desarmonia. Não seria esse o sentido do livre-arbítrio moderno? A essência da liberdade de que falam as antigas escrituras?
Continuo estático. Olhos fixos no aquário inventado. E amplio a divagação:
“Assim como o animal irracional é seus impulsos, o homem/racional é a sua liberdade, o seu poder de julgar e escolher”.
Talvez a liberdade seja o maior dos bens.
Tudo o mais que pensamos possuir poderá se perder no próximo segundo. A liberdade não. Permanecerá existindo em nossas conjecturas, em nossos pensamentos. Só a perderá se quisermos, como fruto de uma escolha.
Súbito, um susto.
Ouço um barulho no lado de fora do imenso refeitório. É a vaca Esperança, um ser acima do bem e do mal, que habita a nossa comunidade.
Olhos enormes – com pálpebras -, ruminando em atitude zen.
Pergunto-me se um dia alcançarei a paz e o equilíbrio da Esperança e se existirá mesmo uma jornada decisiva e desenhada para cada ser. Até onde iremos com a ditadura do pensamento em busca do movimento transformador?
Percebo que há diferenças fundamentais entre os peixinhos e nós humanos.
Os peixes seguem em harmonia por não terem opções. Eu – e a comunidade – pensamos que as possuímos e, portanto, refletimos, julgamos, escolhemos, decidimos. Sem estas potências, definitivamente não seríamos humanos.
Assim como os peixinhos, há meses estamos isolados e protegidos aqui neste pé de serra.
Lá fora, o vírus ceifa milhares de vidas e a pandemia enlouquece o planeta.
Penso, agora, nos seres e em todas as coisas, nos dias e no amor essencial. Sinto que seja a empatia que me leva a trocar de lugar com o outro, o meu semelhante. Num milésimo de segundo, tenho o sentimento de que a escolha e o amor harmonizam e concretizam a opção pela desarmonia do mundo pandêmico lá de fora. O caos.
Toc. Toc. Toc.
É a vaquinha Esperança batendo, delicadamente com os seus pequenos cornos, no vidro da janela. Ser de sapiência este bichinho; nem mais nem menos potência em cada pancada. Sinfonia acústica.
Já passa das 17h e não limpei metade do salão. Desde o início do confinamento respondo pela harmonia e higienização de ambientes na comunidade. Isolados, vivemos imunes. Tudo na contramão.
Desligo o aquário imaginário e sigo limpando o grande salão.
Levo comigo a impressão de uma derradeira piscadela daquele peixinho palhaço, bailando no alto esquerdo da caixa ilusória de vidro.
Piscadela de “olhos sem pálpebras”.
Olhos hipnóticos, cúmplices. Janelas da alma.
Um dia, quem sabe, depois que tudo isso passar, navegarei com eles rumo ao grande oceano.