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‘Tomai, comei e bebei… meu corpo e meu sangue’

Começou com os gatos. Eram dois, com os nomes nada originais de Príncipe e Princesa. Deviam ter uns 4 anos, ambos com vagos ancestrais angorá. Castrados. Presente do filho – “o único presente de que gostei dado por aquele ingrato” pensou Juarez, com um sorriso amargo. “Foi como se ele dissesse, ‘pronto, o senhor já tem companhia, não quer ir pra um asilo, agora vê se não enche mais o saco!’”

Príncipe e Princesa eram mesmo uma boa companha. Juarez amava seu porte elegante, seu ar desdenhoso, seus cuidados com a higiene e o modo como se esticavam na cama, ficando enormes. Valorizava, em especial, os momentos em que demonstravam carinho, roçando os corpos em suas pernas, deitando a seu lado, avançando o focinho contra sua mão, a exigir carícias. Escravo obediente, ele sempre atendia.

Em certo momento, passou a improvisar cantiguinhas para os felinos. Coisas simples, rimas pobres em ão, tipo “Meu gatão bonitão vai ver televisão”. Havia dias em que os dois eram os únicos seres com quem falava. Lera, não lembrava onde, que os gatos eram deuses no Antigo Egito, e imaginou que estava reatando uma tradição multimilenar. “Os sacerdotes deviam cantar coisas assim para eles”, imaginou.

Chegou a visualizar a cena. Como não tinha ideia dos trajes religiosos do Egito dos faraós, vestiu suas imagens sacerdotais com o terno puído dos pastores do templo evangélico que frequentava e colocou estátuas de Príncipe e Princesa dos dois lados da Cruz. Sentia haver algo de pagão nisso, não tinha certeza do quê, mas foi em frente, de qualquer modo era só imaginação, nem o pastor nem os irmãos saberiam de nada.

Juarez não se iludia, tinha consciência de que sua devoção a Príncipe e Princesa era fruto de sua avassaladora solidão, mas era o jeito. Vivia sozinho, num quarto e sala; ver TV e curtir as ferinhas eram sua única atividade de lazer. Não tinha livros, não gostava de ler, e nem de ouvir música. Aliás, estava ficando surdo, e as músicas modernas… tinha calafrios só de pensar em certos trechos obscenos de canções que ouvia na rua.

Vieram então as formiguinhas. Sabia que estavam nas prateleiras da pequena cozinha, tomava cuidado em fechar sempre os potes de alimento para não atraí-las. Chamava-as de miniformiguinhas mirins, minúsculas máquinas de comer, defecar e se reproduzir. Uma tarde, deixou cair por descuido uma gota de mel sobre a pia e observou, fascinado, como se precipitaram sobre ela, num frenesi famélico. A partir daí, passou a alimentá-las e a contemplá-las durante horas.

O próximo lance também ocorreu sem querer. Estava abrindo uma lata, cortou-se, uma gota de sangue caiu sobre a pia – e as formiguinhas se precipitaram. “Também gostam de sangue, são minivampirinhas mirins”, pensou com um sorriso.

Juarez não chegou a cortar-se de novo, para alimentá-las, nem as colocou ao lado do Senhor Jesus e dos gatos, no altar imaginário de suas divindades; mas mudou a posição da cama, para deixa-la mais perto da cozinha e, antes de dormir, passou a criar uma trilha de mel que ia da cozinha até o móvel. Depois era só passar um pouco de mel nos braços e no peito e deitar-se. Mal sentia as mordidas de mandíbulas minúsculas; no dia seguinte, porém, o mel havia desaparecido e via centenas de pontinhos avermelhados em seu corpo. Deixou de tomar banho – já não tomava muito –, mas não por preguiça, não queria correr o risco de afogar alguma retardatária…

A essa altura, cristalizou-se a convicção de que deixaria seus restos mortais para seus bichinhos. Estava com 82 anos, não seria preciso esperar muito. Pensou em diversas passagens do Novo Testamento (Mateus 26:26-28, Marcos 14:22-24 e outras), que traziam frases como “Tomai, comei, isto é meu corpo” e “tomai, bebei, isto é meu sangue”, e sentiu-se um novo Cristo, a sacrificar-se por todos os seres vivos (sabia haver algo de muuito herético nisso, mas o pastor e os irmãozinhos jamais tomariam conhecimento). Só tinha um problema, o processo era demorado, as formiguinhas minúsculas e, depois de haver decidido sacrificar-se, Juarez tinha pressa em partir.

Passou então a deixar restos de comida na janela de seu quarto. As baratas vieram, a princípio tímidas, receosas dos gatos, que estraçalharam algumas; depois, mais ousadas, confiantes em seu número crescente. As mordidas em seu corpo se multiplicaram, algumas nem cicatrizavam, não dava tempo, logo vinham outras.

Hoje, Juarez está em paz, consciente de que seus átomos subsistirão nas barriguinhas de incontáveis gerações de miniformigas e baratas. Pede apenas que morra durante o sono e que sua carcaça não seja imediatamente removida; isso dará a Príncipe e Princesa, seus gatos amados, suas divindades primordiais, a oportunidade de participar do banquete, da oferenda de seu corpo.

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