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Sinal de alerta

Transição quer evitar que agro engula o Cerrado

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Caio de Freitas Paes/Via Agência Pública de Jornalismo Investigativo - Foto Fábio Rodrigues Pozzbom

Berço das águas por abrigar oito das doze principais bacias hidrográficas do Brasil, o Cerrado tem menos de 10% de sua área total protegida por unidades de conservação. O desmatamento está em constante alta no bioma desde a posse de Jair Bolsonaro (PL), mesmo período em que o agronegócio se fortalece cada vez mais na região. A savana mais rica em biodiversidade do planeta vive em incerteza quanto a seu futuro no governo Lula (PT), conforme relatos de ambientalistas, representantes de comunidades tradicionais e políticos envolvidos no gabinete da transição.

“Em um primeiro momento, sabemos que não dá para contar com mais dinheiro na proteção do Cerrado, mas nossa expectativa é sim de maior empenho do novo governo nessa tarefa”, disse à reportagem Maria de Lourdes de Souza Nascimento, coordenadora-geral da Rede Cerrado – composta por mais de 300 entidades da sociedade civil, associadas direta e indiretamente, unidas pela defesa do bioma.

No fim de novembro, a Rede Cerrado entregou ao gabinete da transição uma lista de temas prioritários para a devida retomada da proteção ao bioma. Além disso, também teve reuniões virtuais e presenciais com o grupo técnico (GT) de Meio Ambiente da transição em Brasília, para discutir o papel do Cerrado no futuro governo.

“A candidatura de Lula consolidou uma ideia de desenvolvimento sustentável não só para o Cerrado, como para os outros biomas”, afirmou à Pública o relator do GT de Meio Ambiente, Pedro Ivo Batista, também co-fundador do partido Rede Sustentabilidade. “Há divergências quanto aos modelos para isso, mas caberá ao presidente arbitrar os interesses e definir novos rumos”, disse ainda.

As divergências citadas por Batista podem ser notadas em outro GT da transição, o de Agricultura. Nele, há políticos diretamente ligados ao agronegócio no Cerrado, como por exemplo a ex-ministra da Agricultura Kátia Abreu (PP-TO) – mente por trás do chamado Matopiba, apelido da nova fronteira da soja no país, situada em meio ao que ainda resta de vegetação nativa em pé no bioma.

Aliado do ‘rei da soja’ Blairo Maggi, o deputado federal e também ex-ministro da pasta Neri Geller (PP-MT) integrou o GT da Agricultura. Atual vice-presidente da bancada ruralista na Câmara, ele relata a proposta de exclusão do Mato Grosso da Amazônia Legal – projeto que, segundo organizações da sociedade civil, aproveita-se das autorizações legais para o desmatamento no Cerrado, mais permissivas que as da Amazônia.

Geller defendeu a necessidade de mudanças quanto à “narrativa do agro” pelo futuro governo. “Partimos do ponto que nós já temos a legislação [ambiental] mais exigente do mundo e que ela deve ser respeitada”, disse, além de afirmar que “criminosos ambientais têm de ir para a cadeia e aqueles que produzem dentro da lei devem ser reconhecidos”.

Para além, o ex-ministro endossa o trabalho de grandes agroempresas no bioma. Algumas delas monitoram a origem de parte dos grãos e commodities que comercializam, alegando, assim, maior chance de evitar o desmatamento ligado à produção agrícola. Mas este modelo tem problemas, pois cadeias indiretas de fornecimento seguem opacas, com o comércio de soja cultivada em áreas devastadas ilegalmente ou até mesmo griladas.

“O governo precisa incentivar pequenos e médios produtores, precisamos de linhas de crédito e financiamento para que se monitore a produção, porque já existe um modelo a seguir no Cerrado”, afirmou Geller.

Longe dos debates em torno da transição, povos tradicionais seguem à mercê de agressores nas áreas mais preservadas do bioma. Em setembro passado, por exemplo, comunidades de fundo e fecho de pasto no oeste baiano – pleno Matopiba – denunciaram novos ataques de grileiros em suas terras, na sua maioria não regulamentadas pelo poder público.

Os ataques não cessaram desde então, como denunciado por representantes de comunidades tradicionais em audiência pública sobre os “danos socioambientais do projeto Matopiba”, realizada em 22 de novembro passado na Câmara dos Deputados.

A destruição do grande berço das águas brasileiras durante o governo Bolsonaro impressiona. Considerando apenas dados do próprio Executivo, só entre 2019 e 2021 o Cerrado oficialmente perdeu mais de 22 mil km² de sua vegetação, praticamente o dobro da área total do Catar, país-sede da atual edição da Copa do Mundo.

Dados da sociedade civil sugerem que o ritmo da devastação no bioma não diminuirá neste ano. Só nos primeiros seis meses de 2022, praticamente um Distrito Federal inteiro de sua área foi derrubado.

Conforme o Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado, o desmate segue em alta em áreas sem informação fundiária – por vezes invadidas e griladas, dada a falta de determinação de seu uso público pelas instâncias federal ou estaduais e a ausência de posse privada das terras.

Também há incerteza quanto ao monitoramento federal do bioma. No início de 2021 já se noticiava a falta de dinheiro para a manutenção dos sistemas de vigilância por imagens de satélite do desmatamento no Cerrado, como relatado pelo colunista da Pública Rubens Valente.

“Temos a informação da existência de funcionários comprometidos com o trabalho de manutenção, mas, do jeito que estamos recebendo [informações do atual governo], o monitoramento do Cerrado está em sinal de alerta”, disse Pedro Ivo, relator do GT de Meio Ambiente.

Para entidades da sociedade civil, é preciso avançar ainda mais no combate à devastação. “O mais urgente é que haja uma suspensão desse monte de licenças [de desmatamento] para as agroempresas, mineradoras e reflorestadoras de eucalipto”, afirmou Lourdes Nascimento, da Rede Cerrado.

A coordenadora-geral da rede disse ainda que o novo governo “tem de voltar a cobrar as multas ambientais, usando essa verba para garantir o monitoramento e também estimular o reflorestamento do Cerrado com espécies nativas”.

Não é segredo que o berço das águas no país passou ao largo da campanha presidencial. O bioma também passava batido nos trabalhos do gabinete da transição até uma breve menção, pelo ex-ministro Carlos Minc (PSB-RJ), durante entrevista coletiva do GT do Meio Ambiente em 30 de novembro.

“Ontem [29], inclusive, conversamos com o setor da soja, para fazer um pacto da soja sustentável no Cerrado. O da Amazônia [a moratória da soja] está funcionando bem e deve ser um exemplo”, disse então Minc.

Em vigor há mais de 15 anos, a moratória na Amazônia foi criada para garantir que o grão produzido na floresta e comercializado pelos signatários do acordo não venha de áreas desmatadas desde julho de 2008.

Se a possibilidade de um pacto nestes moldes empolga ambientalistas e comunidades tradicionais, não se pode dizer o mesmo quanto às alas do agronegócio no futuro governo, nem a entidades ruralistas.

Dias após a declaração de Minc, ao Canal Rural o bolsonarista investigado pelo STF e presidente licenciado da Associação dos Produtores de Soja (Aprosoja), Antônio Galvan, qualificou a possibilidade de uma moratória no Cerrado como “absurda”, garantindo que entidades ruralistas irão “lutar para que isso não aconteça”.

“É um tema polêmico, então tem de haver cautela, até para que não se inviabilize a produção [de soja] em Goiás, no Mato Grosso”, disse à Pública Neri Geller.

“Agora, quanto à moratória em si, acredito que ela poderia se dar em áreas que foram desmatadas de forma ilegal… com isso eu concordo, mas é preciso estabelecer um diálogo antes de defender qualquer medida”, afirmou ainda o membro do GT de Agricultura.

“Sabemos que, do jeito que está, não dá. É preciso aumentar a proteção socioambiental no Cerrado, especialmente na região do Matopiba”, disse Pedro Ivo.

Por outro lado, os sinais do exterior quanto a mais sustentabilidade na produção de soja e outras commodities no Cerrado não animam.

Negociadores do Parlamento Europeu e dos Estados-membros do bloco chegaram a um acordo, em novembro passado, sobre uma lei para proibir a importação de produtos que contribuem para o desmatamento. O pacto tem de ser referendado pelo parlamento do bloco, em uma votação ainda sem prazo para ocorrer.

Mas o recente acordo exclui a maior parte do Cerrado das novas exigências europeias, mesmo após um pedido por sua inclusão, feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas.

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