Lei Maria da Penha
Três gerações sobrevivem à triste violência de gênero
Publicado
emAos 15 anos da lei Maria da Penha, avó, mãe e neta contam suas histórias, que se misturam com a evolução da legislação. “Quando eu falo nisso, minha cabeça dói. É muito doloroso reviver todas as coisas ruins da minha vida”, diz Marlene, olhando para o alto para evitar que as lágrimas caiam. Marlene Romano de Jesus, 63 anos, auxiliar de enfermagem aposentada, é a mais velha de uma família de mulheres marcadas pela violência de gênero. Além dela, a Agência Pública conversou com sua filha, Cristiane Romano Matias, de 43 anos, e sua neta, Jaqueline Romano Matias dos Santos, de 29 anos, que também viveram situações de violência ao longo de suas vidas.
Aos 15 anos da Lei Maria da Penha – considerada uma das melhores leis contra violência doméstica no mundo – completos nesta sexta-feira 6 de agosto, o Brasil ainda é o quinto país que mais mata mulheres pelo simples fato de serem mulheres, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Só estamos atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres.
Mas na época da violência contra a farmacêutica Maria da Penha, na década de 1980, o Brasil ainda estava muito distante de reconhecer que a violência contra a mulher sequer existia. Ela foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte de Marco Antonio Heredia Viveros, seu marido à época. Em 1983, Marco Antônio disparou um tiro em suas costas enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica devido a lesões irreversíveis em sua medula. A primeira Delegacia de Defesa da Mulher foi criada apenas em 1985, em São Paulo, e nesta época ainda era necessário que a própria vítima entregasse a intimação nas mãos do agressor.
Com o tempo, e a partir da lei Maria da Penha de 2006, considerada inovadora por não prever apenas assistência à família e responsabilização dos autores, como também a inclusão dos agressores em programas de reeducação, outras leis de proteção às mulheres vêm, aos poucos, evoluindo — caso da Lei do Feminicídio, de 2015, que tornou o crime de feminicídio um homicídio qualificado, colocando-o na lista de crimes hediondos e exigindo penas mais altas, de 12 a 30 anos e mais recentemente, em julho de 2021, o projeto sancionado pelo governo federal que incluiu no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher.
Os casos de violência, no entanto, continuam aumentando: Segundo o levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicado em junho deste ano, 8 mulheres foram agredidas por minuto em 2020.
Prazer em agredir
Marlene conheceu a violência com apenas sete anos, em 1965, quando morava em Nanuque, no interior de Minas Gerais. A mais nova dos doze filhos afirma ter perdido as contas de quantas vezes foi sexualmente abusada pelo irmão, quinze anos mais velho, e alguns de seus amigos. “Muitas vezes, acordava com ele passando a mão em mim. Outras, acordava e achava que eu tinha feito xixi na roupa”. Ela conta, com a voz trêmula, que o irmão a arrastava até os pés de mamona, nos fundos da casa, e tampava sua boca para que não gritasse. “Depois, ele começou a trazer uns amigos. E ali, eles me machucavam muito, me beijavam à força. Eu ia pra escola com muita dor”.
Ainda segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em junho de 2021, mais de 73% dos crimes de estupro são cometidos contra pessoas vulneráveis. A Lei 12.015/2018 diz que “estupro de vulnerável refere-se àquele contra toda pessoa menor de 14 anos ou que seja incapaz de consentir sobre o ato, seja por conta de sua condição (enfermidade ou deficiência, ainda conforme a lei) ou por não possuir discernimento para tanto”. O levantamento traz ainda que “85,2% dos autores eram conhecidos das vítimas, quase sempre (96,3%) do sexo masculino, muitas vezes parentes e outras pessoas próximas que têm livre acesso às crianças e tornam qualquer denúncia ainda mais difícil”.
Depois da morte de sua mãe, aos quatorze anos, Marlene se mudou com alguns irmãos e uma tia para a cidade de Poá, na grande São Paulo, onde os abusos continuaram. Por ser mais velha, Marlene já conseguia ler e escrever. Foi lendo em revistas de adolescentes reportagens sobre abuso sexual intrafamiliar que compreendeu que podia recusar os assédios cometidos por seu irmão. “Eu não tinha voz ativa, não podia falar nada. Primeiro porque os pais não acreditavam, não davam ouvidos pros filhos. E segundo, por medo. Ele me ameaçava com foices, machadinhas. Naquela época, o irmão mais velho tinha que ser respeitado como o pai da gente”, diz.
Aos 15 anos, após uma crise de ciúmes do irmão, Marlene conta que foi espancada e perdeu seis dentes. “Fiquei banguela até os 25 anos”. Numa tentativa de fugir das agressões constantes, decidiu mudar-se para a casa de uma família e trabalhar como empregada doméstica, na Zona Leste da capital paulista.
Lá, continuou sofrendo abusos sexuais, desta vez cometidos pelo irmão de sua patroa. Em determinado momento, a menina descobriu estar grávida do agressor, aos dezesseis anos de idade. Constrangida e com medo de represálias, Marlene não quis contar a verdade e preferiu deixar a casa. Grávida e menor de idade, passou algumas semanas dormindo na rua.
Desde 1940, o aborto é garantido por lei no Brasil quando a gravidez resulta de um abuso sexual, quando coloca em risco a saúde da mãe ou em caso de anencefalia do feto. No entanto, a legislação ainda enfrenta uma grande resistência na sociedade brasileira e em alguns hospitais da rede pública que deveriam prestar atendimento. Em 2018, a Agência Pública contou a história de mulheres impedidas de decidir sobre a contracepção e sobre a interrupção legal da gravidez em Pernambuco. Um ano depois, a Pública mostrou que um grupo católico pró-vida se organizava para constranger e initimidar vítimas de estupro em frente ao hospital Pérola Byington, em São Paulo. Também em 2019, o direito ao aborto legal no Brasil foi novamente ameaçado, mas desta vez a nível federal. Apoiada pela bancada evangélica, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania reabriu a votação para a chamada “PEC da vida”, proposta de 2015 que visava modificar o artigo 5º da Constituição Federal para garantir o direito à vida “desde a concepção”, e dificultar alterações legais favoráveis ao aborto. A proposta ainda está em análise, mas sem previsão de votação.
Marlene manteve a gravidez fruto da violência. Na rua, conheceu seu futuro companheiro e pai de três outros filhos, com quem decidiu morar, sem saber que o ciclo de violência voltaria a fazer parte de sua rotina. Além dos abusos sexuais e psicológicos, foi submetida a agressões físicas graves. “Esse homem”, ela diz, sempre evitando mencionar seu nome, “só podia ser psicopata”. “Ele tinha prazer em me agredir. Me batia, chutava, mordia, passava pimenta na minha boca, me queimava com cigarro, me obrigava a ter relações sexuais”, conta.
Alguns meses depois, Marlene deu à luz ao seu primeiro filho. Ela conta que, pelo fato do homem não aceitar a criança, ela teve que deixá-lo com familiares que ainda moravam no interior de Minas Gerais.
Marlene mostrou à reportagem as cicatrizes que carrega na pele, fruto das agressões. Em meados dos anos 1970, programas sociais como abrigos e auxílios financeiros destinados a vítimas de violência não existiam. Por não ter renda nem moradia, Marlene foi submetida a duas décadas de violência.
Segundo levantamento do Ministério Público de São Paulo, uma em cada quatro mulheres não denuncia o companheiro por depender financeiramente dele.
Ao longo de seu relacionamento, Marlene afirma ter ido à delegacia mais de trinta vezes para tentar, sem sucesso, prestar queixa contra o companheiro agressor. “Se a Lei Maria da Penha existisse na minha época, eu não teria passado tudo o que passei”, avalia. “Os policiais me disseram: ‘mas ele só te bateu?’. E me aconselharam a voltar para casa e tentar conversar. Se ele tentasse me agredir, que eu tentasse fugir de novo”, relata. Um processo judicial foi aberto contra o companheiro na época, o que de nada adiantou, recorda.
O derradeiro episódio de violência que a fez sair de casa com seus três filhos por pouco não a matou. Marlene levou dez facadas e sobreviveu. Acolhida por uma amiga, fugiu das perseguições do ex-marido durante alguns anos, até o dia em que soube que o agressor morreu em consequência de um AVC hemorrágico. Ela conta, ofegante, que quando teve de reconhecer o corpo do pai de seus filhos no Instituto Médico Legal, o sacudiu para verificar se ele realmente estava sem vida. “Eu tinha que ter certeza de que ele estava morto. Saí de lá aliviada. Só a partir daquele momento, eu era uma mulher livre. Só depois da morte dele”.
Nos anos em que esteve casada com seu agressor, teve duas filhas e um filho. Com uma delas, Marlene que também presenciou cenas de agressão à sua mãe durante a infância, viu a história se repetir com a filha.
Segundo Isabela Del Monde, advogada e fundadora da Gema Consultoria em equidade, a violência geracional, tanto no polo das vítimas como no de agressores, é explicada por dois grandes motivos: “O primeiro dele é relacionado ao machismo estrutural, ou seja, as mulheres de várias gerações são atingidas pelas mesmas consequências de termos uma sociedade organizada pelo domínio masculino sobre as mulheres. Já o segundo motivo se relaciona com aspectos individuais e psíquicos”, argumenta. Isabela explica que quando se cresce em um lar com violência doméstica, a pessoa associa amor ao caos, à violência e, portanto, acaba se envolvendo também, muitas vezes de forma inconsciente, em relações caóticas e violentas pois são nelas que sente mais familiaridade. “Por isso, é extremamente importante oferecer suporte psicológico a vítimas diretas e indiretas, como crianças, para que a violência familiar que testemunhou na infância não seja o destino delas quando adultas. E, claro, as pessoas adultas que passaram por situações de violência, seja como vítimas ou como agressores, também devem contar com apoio psicossocial para evitarem a reincidência”, completa.
Após ter se separado de seu primeiro marido, dependente químico, Cristiane começou a se prostituir. Sem o ensino fundamental completo e sem nenhuma experiência profissional, ela conta que foi a solução que encontrou para sustentar as três filhas, que tinham entre seis e nove anos. Pouco tempo depois, conheceu Alexandre, que se tornou seu namorado e agenciador. As agressões vieram logo no começo da relação. “Ele me batia muito, me chutava no meio da rua igual a um saco de lixo. Até hoje eu sinto dores nas costas e na barriga”, diz.
Aos 23 anos, Cristiane, que havia presenciado cenas de violência doméstica na infância, via a história se repetir. “Tinha mês que ele tava bem. Outros, menos. Quando ele bebia, ficava mais agressivo e violento”.
Durante a relação, que durou cinco anos, ela relata ter sido forçada a manter relações sexuais com Alexandre. Em um dos episódios de violência, Cristiane decidiu ir à delegacia e fazer um boletim de ocorrência mas, segundo ela, “não deu em nada”.
Até o ano de 2005, segundo a Lei 11.106 do Código Penal, se a vítima de violência sexual se casasse com seu agressor ou com outro homem, o crime era anulado. A legislação estava em vigor desde 1940 e integrava os chamados “Crimes contra os costumes”. A lei foi modificada somente em 2005, retirando também do Código Penal Brasileiro termos como “mulher honesta” e “mulher virgem”.
Era o começo dos anos 2000, cinco anos antes da criação da Lei Maria da Penha e das medidas protetivas, que impedem que o agressor se aproxime da vítima. Após um novo episódio de violência, em que Cristiane chegou a desmaiar devido aos golpes, ela decidiu se separar. “Eu vi meu pai bater na minha mãe a vida inteira. Quando me dei conta de que era eu quem pagava todas as contas da casa, pensei: por que eu estou me obrigando a passar por isso?”. Desde a separação, ela diz nunca mais ter visto Alexandre, mas afirma que ele ainda tenta contato telefônico até hoje.
Pela terceira geração, porém, a violência voltou a assombrar a vida das mulheres da família Romano. Desta vez, a vítima seria Jaqueline, filha de Cristiane e neta de Marlene.
Jaqueline Romano Matias, auxiliar de administração, teve um relacionamento de três anos com um homem mais velho. “Minha vó nunca gostou dele”, conta. As agressões, físicas e psicológicas, se iniciaram nos primeiros meses do relacionamento, em 2012. Segundo ela, sempre relacionadas a sentimentos de ciúmes e de possessão do então companheiro: “Ele não me deixava trabalhar, ver minha família, falar com outros homens”.
Em 2015, quando o então companheiro tentou enforcá-la, Jaqueline e sua mãe foram até a delegacia. Ela relata ter ficado mais de cinco horas esperando para prestar queixa até que por fim acabou desistindo de fazer um boletim de ocorrência. As agressões continuaram. “Uma vez ele me prendeu dentro de casa e me ameaçou com uma faca. Minhas vizinhas me ajudaram, eu tive que pular o muro para fugir”. Jaqueline conta que conseguiu se esconder na casa dos vizinhos e chamar a polícia, mas não quis prestar queixa. O medo constante, a tensão e as atitudes violentas tornaram-se cada vez mais frequentes.
Alguns meses depois, as agressões se intensificaram, até que Jaqueline foi vítima de uma tentativa de feminicídio. “Ele chegou em casa bêbado, louco, drogado. Começamos a discutir, ele me bateu e me derrubou no chão. Eu só vi o vulto da faca antes dele me atingir”. O homem a havia golpeado com uma peixeira — faca muito comprida e afiada — na região do pescoço. “A primeira reação que uma pessoa tem é colocar a mão na ferida, tentar levantar, falar. Mas eu não conseguia fazer nada disso. A partir daí, fiquei no chão e só escutava o barulho do sangue escorrendo… ‘glu, glu, glu’”, conta, como quem descreve uma cena chocante de um filme de terror. “Ele ainda me disse ‘levanta daí e para de graça!’”. Depois de ter visto que Jaqueline havia perdido a consciência, o homem se dirigiu à padaria mais próxima e, segundo ela, “foi tomar mais um drink, com a camiseta suja de sangue”.
Jaqueline ficou cerca de uma hora no chão, oscilando entre momentos em que estava desacordada, e outros em que recuperava a consciência. “No chão, eu só pedia pra Deus não me deixar morrer sozinha”. Jaqueline conta que, enquanto aguardava para ser socorrida, pensava em sua mãe e em sua avó. “Bem que minha avó me avisou: esse homem vai te matar, ou vai te deixar aleijada”, lembra.
Segurando sua bengala, ela explica que até aquele ponto não havia pedido nenhuma medida protetiva ou feito boletim de ocorrência pois não imaginava que o marido seria capaz de feri-la ou matá-la. A facada, com profundidade de 8 centímetros, atingiu a coluna e a medula cervical de Jaqueline, deixando-a tetraplégica.
A história de Jaqueline se assemelha com a da própria Maria da Penha, líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres e vítima emblemática da violência doméstica que batizou a lei que leva seu nome. Assim como Maria da Penha, Jaqueline acreditou que as agressões não voltariam a se repetir. Ambos episódios ocorreram na vida das duas mulheres durante a “lua de mel”, uma das fases do ciclo de violência em que o agressor mostra arrependimento e adquire um comportamento amável, despertando nas mulheres uma esperança de mudança real da parte de seus companheiros.
“Ele não me matou, mas conseguiu acabar com a minha vida”, continua Jaqueline. Ela conta que os médicos que a atenderam nos primeiros dias de recuperação haviam diagnosticado que ela não recuperaria os movimentos do corpo. Por ter perdido grande quantidade de líquido da medula cervical, preferiram não operá-la por achar que o procedimento seria muito arriscado.
Durante o ano que se seguiu, em 2015, Jaqueline ficou imóvel, acamada. Após passar por uma cirurgia e meses de sessões de fisioterapia intensiva, ela conseguiu, aos poucos, recuperar parte dos movimentos do lado direito do corpo. Hoje, consegue caminhar, ainda com certa dificuldade, e com a ajuda de uma bengala e de uma bota ortopédica. Ela conta, emocionada, que encontrou forças em sua mãe, Cristiane, para continuar vivendo. “Minha mãe teve que trabalhar muito para sustentar nós três, eu e minhas irmãs. Não é fácil ter uma filha inválida aos vinte e três anos”. Por ter um laudo de tetraplegia, Jaqueline conseguiu se aposentar e vive graças a um Benefício Assistencial.
Seu agressor foi preso em flagrante e permaneceu 5 anos encarcerado. Quando soube de sua absolvição, mesmo com medidas protetivas que o proibiam de se aproximar dela, Jaqueline confessa ter sido tomada por um sentimento de injustiça e de temor. “Minha mãe não me deixava sair sozinha, e eu evitava ir nos lugares onde ele poderia estar. Ficava olhando para todos os lados quando saía”. Após um ano de liberdade, o homem, acometido por um câncer de estômago, faleceu. Usando as mesmas palavras de sua avó, Jaqueline confessa só ter se sentido realmente livre após a morte do seu agressor. “Eu pedi perdão a Deus, porque quando ele morreu, eu fiquei feliz. Não pela morte dele, mas porque só assim eu me senti em paz”.
Além das cicatrizes e dos traumas psicológicos, estas três mulheres permanecem com graves sequelas físicas. Marlene sofre uma hipertensão severa, e aos trinta e quatro anos, a recém formada técnica em enfermagem teve que se aposentar. Cristiane sofreu um AVC hemorrágico aos vinte e seis anos, mesma época em que sofreu as agressões do ex-companheiro. Teve a visão do olho esquerdo comprometida e ainda sofre com lapsos de memória, entre outras sequelas neurológicas. Marlene conclui, como quem resume o sentimento das três: “Acho que essas feridas nunca vão cicatrizar. Não consigo mais ser a Marlene. Não consigo mais ser uma mulher”.
Avanços e falhas
Isabela Del Monde explica que o maior impacto que a Lei Maria da Penha teve na sociedade brasileira foi colocar a temática no embate público. Até sua criação, a violência doméstica ainda era um tema muito ligado à esfera privada, tratada no que se chamava anteriormente juizado de pequenas causas (hoje denominados Juizados Especiais Civeis ou Criminais), o que revelava uma naturalização da violência contra as mulheres. “Uma das grandes conquistas da lei foi ter diluído a ideia de que o problema da violência doméstica é uma exceção, um problema privado, do casal, ou ainda de que a culpa é da mulher”, explica a especialista.
Segundo ela, outra contribuição importante da criação da lei foi ter feito uma distinção entre violência física e violência contra a mulher. Hoje, cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher estão previstas na Lei Maria da Penha: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. “As mulheres estão percebendo que o comportamento de xingar, humilhar e mentir ou dizer que ela é doida significa que tem alguma coisa errada. É uma lei que permitiu às mulheres se reapropriarem de suas vidas”, completa.
De forma mais concreta, a Lei Maria da Penha provocou mudanças significativas no intuito de romper o ciclo de violências criando, entre outros dispositivos, a medida protetiva de urgência — uma ferramenta que impede que o agressor se reaproxime das vítimas. Isabela explica que as medidas protetivas funcionam, embora alguns agressores as descumpram. “Elas têm um forte caráter inibidor, pois se trata de uma medida judicial, e seu descumprimento é punido com reclusão. O agressor pode não ter medo, mas é um alerta”, diz.
Isabela explica que as falhas da Lei Maria da Penha não estão na lei em si, e sim na sua aplicação. “Não dá pra garantir uma viatura policial na casa de cada vítima. Para que as medidas funcionem, deveríamos ter um acompanhamento do estado para garantir a segurança da vítima, a ausência desse acompanhamento acaba se tornando um terreno fértil para que o agressor descumpra a medida protetiva”, avalia.
Ainda segundo Isabela Del Monde, enquanto não houver um programa integrado de combate à violência doméstica que se preocupe não somente com âmbito da segurança, da saúde, mas também econômica de uma maneira integrada oferecendo soluções eficientes, o Brasil continuará batendo recordes de feminicídio e violência contra a mulher. É preciso falar sobre o assunto nas escolas, faculdades e para quem está fora das instituições de ensino. “Não tem solução mágica. Se combate a violência com educação, com campanhas e com políticas públicas, e isso não é feito porque não há políticas públicas nem vontade política de investir em transformação cultural”, avalia.
Em um país majoritariamente dirigido por homens, onde cinco mulheres foram assassinadas por dia em 2020 segundo a Rede de Observatório da Segurança, fica o questionamento de Marlene Romano: “será que se a gente tivesse nascido homem, tudo isso teria acontecido com a gente?”.