O beijo
Três pratos, três canecas, três garfos e três corpos no chão

Sempre foram tão próximos os dois. Gerados no mesmo ventre, as mãos experientes da parteira enxergavam o útero materno por dentro. Estavam abraçados, ela dizia, rostinhos colados um ao outro. Seriam irmãos muito unidos.
Os bebês nasceram, dois meninos, unidos pela face, a metade direita da boca de um unida à metade esquerda da boca do outro. Os nomes já estavam escolhidos havia tempo: Castor e Pólux, personagens centrais de uma lenda que o pai ouvira muitos anos antes. Mas apesar da condição incomum dos gêmeos, a verdadeira surpresa foi encontrar uma terceira criança.
Uma menina, tão discretamente posicionada, tão pequena e quietinha que não fora percebida ao longo de nove meses. Os pais, acuados pelo inesperado, envolvidos pelos gêmeos siameses, pela necessidade de ampliar o enxoval, pensando que se um era bom e dois demais, como criar três? Não puderam dedicar tanto esforço mental à escolha do nome da terceira criança. Chamaram-na Antônia.
Os pequenos foram assim crescendo. A cirurgia para separar Castor e Pólux seria viável, mesmo com os recursos pouco avançados daquele primeiro quartel do século XX. Mas os pais achavam tão lindo como eles se acarinhavam… Aquele beijinho interminável, um beijo inocente dos inocentes querubins. Nas poucas fotos de infância, Antônia sempre observava os dois, um satélite orbitando os bebês plenos. Algumas poucas apresentações nos circos itinerantes, que na época ainda tinham espaço para as “aberrações”, renderam uns trocados para a família, gente simples e humilde. O dinheiro, porém, não compensava o desconforto da mãe em expor seus pequenos anjos. Não podia admitir seus filhos serem chamados de “aberração”. Findaram as apresentações, findaram os trocados e manteve-se a vida de escassez. A rocinha nos fundos da casa ajudava um
pouco a sustentar. Assim, os bebês viraram crianças.
Os xifópagos viviam felizes um com o outro. Gostavam das mesmas comidas, gostavam da mesma radionovela. Brincavam as mesmas brincadeiras.
Pareciam uma só pessoa: Gêmeos. Quando puderam expressar opinião, afirmaram que não queriam ser separados. Resistiram à discriminação das outras crianças. Bastavam-se a si próprios. E Antônia orbitava.
Mas a vida sempre esteve longe de ser fácil. Banheiros públicos eram vetados a Gêmeos, numa moral inflexível. Na rua, era comum ouvir expressões como “Que falta de vergonha!”. Não, não estavam se beijando, mas como explicar isso a um passante que não queria ouvir e já tinha suas verdades prontas e consumadas? E no fim, ao chegar à puberdade e sem ter outras bocas para beijar, quem sabe o que terá acontecido?
Adultos, nunca conseguiram um emprego duradouro. Os pais partiram e a casa ficou aos filhos, o terreno extenso vendido em pequenas porções, mutilado, o dinheiro consumido, a cidade crescendo ao redor. Vendiam quitutes – que poucos se aproximavam para comprar – e aceitavam de bom grado as doações feitas pelas “almas caridosas”. Antônia contribuía lavando roupas de terceiros na fonte. E orbitava, a fiel escudeira.
O tempo passou. Vida simples, tostões curtos, quase nulos. Desde sempre os olhares desconfiados dos outros, piorando conforme a idade chegava e lhes mudava as feições, tirava o viço da juventude. Os velhinhos sempre são excluídos. Ao final, tornaram-se eremitas numa casa velha. A velhinha Antônia há mais de setenta anos na infindável translação em torno da constelação de Gêmeos.
Naquele dia, aniversário dos três, um bolo de cenoura comprado com carinho por Antônia no mercadinho da esquina. Um bule cheio de café de segunda, amargo e ralo. Três pratos, três canecas, três garfos. Uma faca grande demais para cortar o bolo, portentosamente colocado ao centro da mesa, ainda embrulhado em papel pardo. Os irmãos sentados em silêncio.
Antônia vai buscar um prato para pôr o bolo. É um dia especial, quer usar aquele prato que ficou de herança dos avós, aquele grande, de porcelana, com o desenho em borrão azul chinoiserie. Alcança a louça na parte alta da estante, as mãos trêmulas da idade. O prato se despedaça ao atingir o chão com estardalhaço. Os gritos de Gêmeos cortam como cacos afiados.
Antônia permanece calada. Orbita até a geladeira e pega um tubo de cola instantânea. Junta os cacos da centenária porcelana azul, abre a tampa da cola, pega o primeiro fragmento. Ouve ainda os gritos dele. Aperta o tubo de cola, que escorre lenta e grossa pelo bico. Após um segundo de reflexão, besunta os próprios lábios com o produto.
Foram encontrados exatamente trinta dias depois. Sobre a mesa, um bule cheio de café amargo, três pratos, três canecas, três garfos. Uma faca grande demais. Um bolo mofado, ainda embrulhado em papel pardo. Os três irmãos mortos, caídos no chão da cozinha, as bocas unidas num incestuoso beijo triplo, carnal. Um beijo guloso, daqueles que devora.
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O conto “O beijo” foi publicado originalmente no livro “Tr3s contos sobre mães famintas e outros textos que devoram”.
SILVEIRA, Cassiano. O Beijo.
In: Tr3 contos sobre mães famintas e outros textos que devoram.
Curitiba: Eu-I/TAUP, 2022. Editora Toma Aí Um Poema – TAUP.
Instagram: @siano_silveira
