Na minha última viagem, escolhi Prado como local de férias. Dali poderia visitar Caravelas, Caraíva e redondezas. Você pode até me perguntar por que Prado e não Troncoso ou Porto Seguro – cidades mais festivas. Escolhi Prado por sua quietude, paraíso onde poderia viver da paisagem, das praias de águas mansas e mornas onde mergulhar, ver baleias é viver num paraíso. Assim, imantada pelas falésias que emolduravam aquele cenário, eu me permiti conhecer Corumbau, que na língua tupi quer dizer “fim do mundo e começo da terra”.
Se me perguntassem como é Corumbau, eu só diria: apenas uma faixa de areia, praia com recifes de corais a serem descobertos e uma pequena vila de pescadores. Corumbau também é o nome do rio que encontra o mar e que esconde, na margem oposta, uma pequena aldeia de índios Pataxós. Foi exatamente em Corumbau que dois fatos marcaram a minha vida.
Acordar às cinco da manhã, sair do chalé descalça, atravessar a areia e sentar-me à beira d´água para assistir a um dos mais belos espetáculos do mundo – a Alvorada.
Indescritível a sensação de observar a mutação suave e intensa da noite para o dia, tendo em volta um mar que sorrateiramente se associa e absorve as cores que colorem o amanhecer. Aos poucos, estrelas são apagadas pelo acordar do sol que lentamente se espraia, assumindo o seu posto. E o mar…, “azulia, esverdeia”, clareia e com a ajuda do vento empurra as ondas sobre mim. Alvorada inesquecível porque só ela e eu naquele momento. Quando o sol começou a vencer, expandindo o seu calor, eis que caminha em minha direção uma miragem: uma pequena índia que quebrava a minha solidão.
Quanto mais próxima, mais seu sorriso me encantava. Ela seguia seu caminho, deixando na areia a prova de sua breve companhia.
A alvorada se fora. Retornei ao hotel para dormir mais um pouco; às onze, desperta, voltei à praia. Aqui, conto a vocês os momentos eternizados em mim:
Foi em Corumbau que conheci Amanda. Uma velha índia que diziam estar ali desde que a frota de Cabral desembarcara na região. Outros, menos respeitosos afirmavam que serviu de modelo para a pintura da Primeira Missa no Brasil no Monte Pascoal. Tudo pilhéria.
O fato é que conheci Amanda, a índia da praia com sorriso de Alvorada. Passava o dia agachada debaixo de uma árvore, onde oferecia colares à venda. Olhei ao redor, turista quase nenhum; pensei em como ela sobrevivia, pois as vendas não existiam. Parei por minutos a observar e decidi ajudá-la comprando colares, brincos e pulseiras, com pensamentos de presentear. Eram de fato bonitos, feitos de sementes diversas. Ela aproveitou minha presença para alertar-me sobre algo fantástico que, atenta, ouvi e aproveitei.
Em função da maré, pude viver algo extraordinário. Em determinada hora, esvazia e permite adentrar o mar até tão longe; encontrar gaivotas afoitas, alimentando-se de peixes atordoados pela água rasa.
Nessa vazante, se sobrevoar, é possível ver o desenho de um grande coração – o segredo da Ponta de Corumbau. No entanto, o tempo de permanência é curto, porque já o mar retorna, sem muito avisar, a resgatar o que lhe pertence, e o coração volta a se esconder sob as águas. Por tudo isso, decidi ficar mais tempo.
Era impossível ignorar Amanda. Passei a sentar-me na praia todos os dias para dar bom dia à alvorada e receber seu sorriso na sua passagem. Nas tardes, sentava-me junto dela.
Certa feita, perguntei se ela sabia ler. Confessou-me a vontade de aprender porque tinha um desejo. Como escola nunca houve, as crianças eram levadas para a outra vila. Lá, preparadas. Quando crescidas, iam para a cidade grande completar a formação – alguns médicos, outros engenheiros índios que se tornaram orgulho do povo da nação Pataxó. Pena que não voltavam.
Amanda sabia da importância da educação, que na aldeia era aprendida de maneira diferente. Ela me ensinou muito sobre educação indígena. Eu, como professora aposentada, quis transmitir também um pouquinho da escola que conheci.
Rabiscando com um pauzinho na areia, ensinei seu nome. Desenhando e repetindo como criança, ela aprendeu a ler e a escrever algumas palavras. Duas semanas e recebi no hotel um bilhete. Dizia: “Sou Amanda, índia Pataxó. Amiga de mulher que me ensinou a escrever. Disse ela que quando me viu pensou ser uma miragem, que meu sorriso era um anúncio de felicidade. E digo que foi naquele dia que a minha vida viveu a alvorada. Hoje revelo o meu desejo. Amanda aprendeu a ler e escrever. Isso significa para a índia um novo amanhecer”.
Eu não sabia se chorava ou sorria, tão emocionada fiquei. Saí do hotel, atravessei a areia, encontrei-a debaixo da paineira. Agradeci a ela com um forte abraço, porque naquele momento senti que tudo valeu a pena. Foi no fim do mundo e no começo dele a me revelarem que ainda sou o desejo de ensinar e aprender. Obrigada, Amanda, seu jeito simples, sua fala enrolada, sua aura de deusa indígena transmutada fizeram-me sentir a própria alvorada.
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O FIM DO MUNDO E COMEÇO DA TERRA integra a antologia CONTOS DE ALVORADA publicada pela Editora Meia-Noite Alvorada RS. SP.