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Tunico vira criminoso sem crime; verdadeiro ladrão morre aos 70

Aquele homem era o que pode se dizer bem-nascido. De família abastada, não teve problemas enfrentados pela maioria. No entanto, não quer dizer que não guardasse mágoas e algumas rabugices. Acredite, possuía algumas, mas eis que hoje, seu aniversário de 70 anos, uma lembrança o tirou da cama mais cedo. Coisas de tempos de menino, que, não se sabe a razão, o fez compartilhá-la com amigos e parentes que o ajudaram a apagar tantas velinhas.

Antes de cortarem o bolo, pediu que todos, não mais de 30, se acomodassem da maneira que quisessem, mas que prestassem atenção na história que tinha para contar. Aliás, não apenas sua, pois envolvia Tunico, o filho da falecida Judite, empregada da sua mãe. Pobre rapaz, cujo destino parece que não foi dos melhores, conforme o velho passou a contar.

Pois bem, lembro-me bem desse dia, que aconteceu há exatos 60 anos, pois, assim como hoje, também era meu aniversário. Dez anos! Agora, minha idade passaria a conter dois dígitos e, é quase certo, irei para minha futura cova antes de completar três. Se bem que vovó chegou aos 102.

Tunico, pouco mais novo que eu, me fazia as vontades nas brincadeiras. Quando não queria mais desfrutar da sua companhia, o dispensava com um “Pode ir!” e, não tardava, o moleque ia cabisbaixo para a cozinha ajudar a mãe. Isso se, por acaso, não tivesse uma cerca para ser consertada ou o jardim não precisasse de cuidados.

E lá estava eu montado nas costas do Tunico, que se fazia de meu cavalo, apesar das vestes puídas, quando ouvi os gritos da minha avó. Minha montaria e eu paramos a brincadeira por um instante para nos inteirar sobre a situação.

— Quem roubou o meu relógio? Quem foi o maldito ladrão que roubou o relógio que foi do meu pai? Ou o relógio aparece agora ou, então, chamo já a polícia!

Tunico, olhos esbugalhados, parecia assustado com tudo aquilo. Devo confessar que aquela cara de coelho desesperado diante da matilha de cães me trouxe certo regozijo. Teria sido ele o larápio? Pois foi justamente isso que o delegado Horácio, chamado às pressas por vovó, descobriu em pouco mais de uma hora.

— Pode deixar, dona Carmem, que comigo esse pirralho abre o bico num instante.

E não é que Tunico abriu o bico rapidinho? Resistiu a alguns safanões, mas quando disseram que era melhor falar ou sua mãe perderia o emprego, assumiu toda a culpa. E lá foi o Tunico, amarrado que nem porco, para a delegacia. A partir de então, nunca mais soube notícias dele. Quer dizer, até soube, mas não dei muita importância. Melhor ficar longe dessa gente.

Quanto à promessa de não mandar a mãe de Tunico embora, obviamente que mamãe não poderia tê-la cumprido, ainda mais depois das súplicas de vovó, que não queria mais saber daquela gente em casa. Fez bem. Não concordam?

Mas percebo que todos aqui estão curiosos quanto ao destino do Tunico. Como bom anfitrião, sinto-me na obrigação de lhes contar. O moleque passou alguns meses na cadeia, onde foi colocado na mesma cela dos outros bandidos, a maior parte composta de homens feitos. Que dessem jeito nele, não se pode controlar os instintos dessa corja.

Tunico, que nem tenho certeza ter iniciado no crime por causa do relógio de vovó, acabou se metendo com uma gangue assim que saiu da prisão. Vi, anos mais tarde, seu retrato num jornal. Estava com a garganta cortada. Quase não o reconheci, caso não fosse por aqueles olhos esbugalhados.

E, para finalizar, o relógio nunca foi encontrado. Na certa, deve ter sido vendido a preço de banana. Esse tipo de gente não sabe apreciar as boas coisas da vida. Vovó, desolada com a perda do relógio que foi do seu pai, acabou definhando e faleceu seis meses após. Pobre alma tão bondosa, vítima de um crime cometido por gente que ela havia acolhido aqui em casa.

Mas deixemos de lado tais histórias tristes. Vamos festejar, pois hoje é dia de comemorar. Aposto que vocês não adivinham para quem vai o primeiro pedaço do bolo.

A plateia, antes boquiaberta, gargalhou diante da pilhéria do anfitrião. E, após duas horas, todos foram se despedindo, até que, solitário, o aniversariante se recolheu. Já no quarto, pegou um banquinho de madeira de lei.

Um pé, depois o outro, conseguiu alcançar a porta superior do armário. O velho, quase nas pontas dos pés, visualizou uma mala bem ao fundo. Ele esticou o braço, pegou a alça e puxou a mala para si. Ele a abriu e sorriu o sorriso dos vitoriosos. Todavia, acabou se desequilibrando e, ao cair, bateu a cabeça na cabeceira da cama. O sangue escorreu pelo tapete persa, anunciando o último suspiro do homem.

Um relógio caríssimo, cuspido pelo choque da mala no chão, repousa no canto.

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