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Beijo roubado

Um ato atrevido, de jovens comunistas, levado para o túmulo

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Autor/Imagem:
Hélio Cervelin - Foto Produção Irene Araújo

Era inverno, e o ano 2019. Uma academia de Pilates. E, repentinamente, ela surge! Aparência jovem, usando um vestido branco de renda, ela estava lá, em pé. De olhar sério, compenetrado, sem mirar ninguém, especificamente.

Assalta-me, de imediato, a surpresa, a perplexidade. Estamos no ano de 2019! Como ela pode estar aqui?

Diante da surpresa, as lembranças afloram. O ano era 1977. Lembro-me de um dia frio, pela manhã, na cantina da empresa pública em que trabalhávamos, na Avenida Mauros Ramos, em Florianópolis. Ambos chegamos para tomar café. Aproveitei-me de sua distração (ela com um pedaço de pão nas mãos) e roubei-lhe o primeiro beijo.

– Seu louco! disse ela, assim que se desvencilhou do meu assédio.

Éramos jovens, e eu estava me apaixonando por ela e vinha demonstrando isso. E sentia certa reciprocidade. Daí a coragem para realizar aquele ato atrevido.

Numa das conversas que tivemos, ela revelara que já tinha um amor. Era um jovem “subversivo”, foragido do país e exilado na Inglaterra. Ele havia sido “retirado”, clandestinamente, do país após participar de alguns eventos de resistência ao regime militar, na qualidade de filiado ao Partido Comunista do Brasil, uma agremiação proscrita desde o início do Regime Militar.

Diante das ponderações de Maria da Graça (vamos chamá-la assim), pude perceber que minhas chances de conquistá-la seriam mínimas. Logo eu, um simples burguês, idealista, porém sem nenhum preparo de resistência a qualquer regime, detendo um vocabulário pobre quando o assunto era engajamento político ou enfrentamento da ditadura militar. Quanto ao rapaz, ela havia me mostrado uma foto: era um belo jovem, de cabelos escuros, lisos e barbas longas, como convinha aos comunistas da época, em homenagem aos líderes da Revolução Bolchevique da União Soviética. Naquela época, eu também usava barba e cabelos longos.

Dois anos mais tarde, eu até poderia apresentar-lhe algum argumento de esquerdista, quando a única informação de que dispunha a meu favor foi o fato de estar presente, no início da Rua Felipe Schmidt, encostado na Loja Saco e Cuecão, quando aconteceu aquilo que ficou conhecido como “Novembrada”, um ato público de hostilidade ao Regime Militar. Era o dia da visita a Florianópolis do Presidente da República, o General João Baptista Figueiredo. Na semana seguinte haveria nova manifestação na Praça XV, desta vez enfrentada com muita violência pela cavalaria militar, portando baionetas caladas contra os manifestantes desarmados.

Devido àquelas manifestações, cinco jovens universitários foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Um drama semelhante ao do namorado dela, só que desta vez com a prisão consumada, trazendo muitos dissabores às famílias dos presos e aos militantes da Esquerda de Florianópolis.

Passados alguns anos, após a anistia, em 1979, o jovem exilado voltou, mas seu romance com Maria da Graça não vingou. Mais tarde, eu já casado e convivendo em nova empresa como colega de Maria da Graça (de novo, estávamos na mesma empresa), constatei que ela havia encontrado um novo amor, e era muito feliz com ele. Mas havia um problema: ambos eram viciados em drogas. E foi isso que dizimou a vida dela, ainda jovem.

Assim como surgiu, ela também desapareceu. A Maria da Graça que vi, na verdade apareceu-me em sonho. Talvez para dizer-me que encontrou novos caminhos e que continua vivendo feliz no espaço indefinido.

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