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Colóquio contemporâneo.

Um bocadinho de prosa com Marcela Hallack

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Acervo Pessoal

Conheci Marcela Hallack num grupo de escritores. Foi mais uma das gratas surpresas que tive ao cultivar laços com autores e autoras das alterosas. Disse-me que estava para lançar seu primeiro livro, algo que eu havia feito alguns poucos meses antes. Esperei, atento, para poder apresentar a novidade aqui no Café Literário. É de seu livro que se extrai o poema inédito a seguir, no qual se sente a mineiridade com suas paisagens e mistérios em cada verso:

O canto do sineiro

Essas Minas também ecoam tristes
os sinos das igrejas excludentes,
douradas por mãos pretas,
e as badaladas sangram
no chão de pedra de Tiradentes.
Não quero ser pedra. Quero ser gente.
Na rua Direita, ergueram Nossa Senhora do Rosário,
para as rezas e cultos dos escravizados,
em separado, em separado.
blém blém blém
Ontem, como hoje,
não quero ser pedra. Quero ser gente.

No sexta, 21, a partir das 19h será lançado em Juiz de Fora, Minas Gerais, o seu livro de estreia, intitulado “Versos de Liberdade: um colóquio contemporâneo”. Nesta obra, Marcela promove um diálogo sobre questões raciais e exalta as práticas da liberdade e enfrentamento do racismo, tão presente ainda na sociedade brasileira. Mãe e esposa numa família multirracial, o livro é ilustrado por Pedro Loures, estudante de arquitetura na Universidade Federal de Juiz de Fora e filho de Marcela, com belas imagens abstratas em tons de preto e cinza.

“Versos de Liberdade” vem numa edição caprichada e traz 114 poemas distribuído por quatro cantos, entremeados por trechos de autores brasileiros negros como Luiz Gama, Cruz e Souza, Machado de Assis, Maria Carolina de Jesus, entre outros.

A obra foi contemplada pelo Programa Cultural Murilo Mendes, da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage – Funalfa, ligada à Prefeitura de Juiz de Fora, através do Edital Quilombagens/ 2023, compreendendo, como recurso de inclusão, o audiolivro, disponibilizado, através de Qrcode, na última página do livro impresso, com audiodescrição e narração.

Marcela Hallack, nascida em Juiz de Fora no ano de 1975, é formada em Direito pela UFJF e atua no serviço público como oficial de justiça da Justiça Federal. É pesquisadora nas áreas de direitos humanos, filosofia, sociologia, linguagens, saberes e literaturas. É membro da Sociedade Brasileira de Poetas Aldravianistas, da Confraria dos Poetas e da Liga de Escritores de Juiz de Fora – LEIAJF, e integrante do coletivo Leia Mulheres Juiz de Fora.

O lançamento será na Autoria Casa de Cultura, na rua Batista de Oliveira n.º 931, 2.º andar, Centro, Juiz de Fora – Minas Gerais. Em breve, haverá também lançamentos na FLITI – Feira Literária Internacional de Tiradentes, e na capital mineira.

Marcela concedeu a Notibras a entrevista a seguir:

Mulher mineira, mãe, servidora pública, poeta. Como Marcela Hallack se movimenta entre essas múltiplas facetas?

Acredito que somos potências múltiplas e que a vida é uma grande oportunidade de experimentar e partilhar essas potências. Repito a frase do poeta cubano José Martí: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, como uma grande metáfora para o convite de transbordar na vida.

Quando foi que você “rasgou o peito” em forma de poesia? Quais são suas influências nessa área?

A literatura é parte incandescente da minha vida. Tenho enorme gosto pela leitura; a escrita me acompanha desde menina, de forma intimista e reservada. Apenas em 2023 comecei a compartilhar alguns textos com o mundo. No livro “Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo”, há explícitas influências literárias de autores e autoras negras, que, inclusive, integram o diálogo, como Maria Firmina dos Reis, Lima Barreto, Machado de Assis, Cruz e Souza, Castro Alves, Luiz Gama, Carolina Maria de Jesus, entre outros. Como sou uma leitora ávida, percebo, no geral, várias influências e, se estou citando algumas, já sinto que posso estar escanteando injustamente outras, mas continuemos: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Cora Coralina, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Adélia Prado, Clarice Lispector, Guimarães Rosa…

Conte-nos um pouco sobre o processo de criação de “Versos de Liberdade”. Qual foi o ponto de partida e quem foi seu primeiro leitor?

Difícil identificar um ponto de partida. Acredito que este é um livro que vem nascendo dentro de mim há muito, muito tempo, fruto de silêncio e berro forte. O primeiro leitor e, muitas vezes, crítico severo: meu marido, Alexandre Avelar.

Seu livro “nasceu do diálogo poético estabelecido em um seio familiar multirracial, no qual os ideais de libertação são servidos com o café da manhã de cada dia”. Qual é a origem dessa família multirracial? Quem foi a gente antepassada que culminou em você?

Carregamos nossos antepassados dentro e nos nossos olhos. Uma típica família brasileira, fruto de miscigenação de culturas e de saberes, que não podem ser negligenciados, nem muito menos sobrepostos de maneira hierárquica. O que nos permite o diálogo proposto na obra é justamente o encontro respeitoso de nossas unicidades, na construção de um mundo verdadeiramente pautado em valores de igualdade, equidade e justiça.

A obra aborda a complexidade do aquilombar contemporâneo e a exaltação das práticas de liberdade. Como você acredita que a sociedade brasileira pode avançar em direção à igualdade e à justiça?

Uma sociedade estruturalmente racista e misógina, sedimentada em determinados alicerces que, de forma indecente, subjugam homens e mulheres em razão de discriminações odiosas, visando manter o status quo de dominação econômica, social e cultural, precisa romper com vários paradigmas para avançar em direção à igualdade e à justiça.

O livro é ilustrado por Pedro Loures, seu filho. Como foi a experiência de trabalhar com um familiar em um projeto criativo?

A família é, em si, um processo criativo, é uma célula da sociedade, onde temos a oportunidade de começar a experimentar as potências das quais falávamos a pouco, um rico percurso de grande aprendizado. Sou muito grata por isso.

O que você pensa a respeito da representatividade na literatura brasileira, especialmente a contemporânea? Avançamos neste quesito?

Estamos avançando, em gerúndio lento. Participo do coletivo Leia Mulheres Juiz de Fora: no ano de 2024, lemos autoras latino-americanas, um livro por mês de autorias femininas diversas. Essa oportunidade enriquece a sociedade, alarga nossos pensares e nossos repertórios diante do mundo.

Marcela, deixe uma mensagem aos leitores de Notibras.

Gostaria de agradecer a oportunidade dessa prosa, que ela possa alcançar outros corações e promover diálogos profícuos para a nossa sociedade. Versos de liberdade: um colóquio contemporâneo é também um convite para bordarmos, todos e cada um, nossos versos de liberdade, por uma sociedade verdadeiramente plural, fraterna e inclusiva, em que as medalhas não valham mais que os homens e as mulheres.

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