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Um chaveiro de ouro como brinde da obra prometida por Geisel

José Escarlate

Uma iniciativa que se transformou no calcanhar de Aquiles do governo Geisel foi a Ferrovia do Aço, projeto por demais ambicioso que consumiu verbas elevadas, resultando num imenso fracasso. Projetada em 1970, durante o período do “Milagre Brasileiro do governo Médici, a Ferrovia do Aço destinava-se – pelo menos os planos eram esses – a escoar a produção do minério de ferro de Minas Gerais para a Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, e para a Companhia Siderúrgica Paulista, a Cosipa , em Cubatão.

Nas tratativas para assumir o governo, Geisel prometeu a Médici levar o projeto adiante. Com sua construção anunciada em 1973, a obra efetivamente só teve início em 1974. Chamada Ferrovia dos Mil Dias, ela possui em seu trajeto mais de 100 túneis. Um deles, o maior do país, possui 8.600 metros de extensão.

Segundo o projeto, a Ferrovia do Aço – então considerada uma obra de primeiro mundo – teria a extensão de 834 quilômetros. Cada composição teria cerca de 100 vagões, puxados e empurrados por quatro locomotivas de tração múltipla. Para a época, o custo do projeto impressionava: US$ 1,1 bilhão. Nos planos iniciais, uma alteração. A ferrovia alcançaria o novo porto de Sepetiba, no Rio, com um terminal exclusivo para exportação de minério.

No lançamento da pedra fundamental, com a presença de Geisel, lá estavam os credenciados no Planalto. Entre eles, eu. Jeceaba, local da solenidade, era uma cidade pequena. Distante 124 quilômetros de Belo Horizonte, a cidade é banhada pelo rio Paraopeba, um dos mais importantes afluente do São Francisco. Sua população, à época, era de cerca de 2 mil habitantes.

Na falta de hotéis – os poucos haviam sido ocupados por dirigentes de empreiteiras de olho no projeto e no dinheiro -, fomos alojados em um convento de freiras, em um imenso salão com camas do tipo patente. Além do travesseiro, recebemos uma colcha e um lençol. Pior do que quartel. À noite, frio intenso. Na falta de cobertores, alguns coleguinhas descobriram uma cachaça mineira numa venda próxima, que fazia as vezes de cobertor. Quem gostava da fruta, dormiu bem. E quente. Nessa noite, sempre muito moleque, o Cornélio infernizou a vida do jornalista Carlos Max Torres – o “Velho Max”- pela sua barba e óculos fundo de garrafa -, que fazia sua primeira viagem pela presidência.

Na manhã seguinte, saímos bem cedo, depois de um café da manhã bem ralo, como os mineiros adoram. Minutos depois chegava o presidente, acompanhado dos ministros dos Transportes, que era o general Dirceu Nogueira, e de Minas e Energia, Aureliano Chaves. Além do frio, chovia muito. Geisel autorizou que eu e o Cornélio subíssemos ao palanque, para nos abrigar. Ao meu lado, o João Pinheiro, fotógrafo do presidente. Os outros jornalistas ficaram em um palanque fronteiro, coberto, mas entupido de gente.

Um cidadão, presidente de uma empreiteira que havia sido aquinhoada com uma parcela da licitação, começou a entregar a várias autoridades chaveiros de ouro com inscrição alusiva ao início das obras. O Cornélio já havia descido e no palanque restava eu. Voltando-se para mim o homem disse: “Este é para o senhor, doutor” – por conta dos meus cabelos já grisalhos. Agradeci, honrado pelo “doutor”, recebendo o tal chaveiro de ouro como recompensa por ter passado muito frio e perdido uma noite de sono.

Na volta ao Planalto fui ao Serviço de Segurança entregar o “brinde” ao coronel Pedroso. “Ele é seu” – disse Pedroso. “Foi presente dado pelo presidente de uma empreiteira. Não temos nada contra” – aduziu. Guardo o tal chaveiro comigo até hoje, sem jamais tê-lo usado.

Resumo da ópera: Vários trechos da ferrovia foram abandonados. O material destinado à eletrificação da estrada – locomotivas, transformadores – importado da Inglaterra e que custou cerca de meio bilhão de dólares, em valores da época, apodreceu num galpão da antiga Rede Ferroviária Federal, na cidade paulista de Cruzeiro.Trata-se de um monumento ao descaso do poder público em nosso país.

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