Borra de café
Um conto do malandro que morreu na cama com vários tiros
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emAbri os olhos e já era noite lá fora. Acendi um cigarro e me estiquei na cama. Pensei se ainda tinha café na garrafa, se tivesse deveria estar frio. Mesmo assim tomei um gole. Liguei o computador para trabalhar um pouco no meu novo livro e fui ao banheiro mijar. O odor era terrível e a toalha fedia ao mofo. Já estava na hora de chamar a Firmina para limpar o conjugado em que vivia.
Abri a geladeira e o armário, nada para comer. Era insuportável ir ao mercado, então comecei a esboçar uma lista para a Firminda comprar alimentos pra mim. O café só duraria mais um dia. Coloquei o pó e a água na cafeteira e me sentei para escrever.
Às vezes, eu tinha uma recaída e queria saber que horas eram. Mas me contive, isto não importava.
Escrevi umas duas laudas, mas a fome gritava no meu estômago, não lembrava a última vez que tinha comido. Observei a toalha da mesa cheia de borras de café. Se fosse antes da meia noite ainda encontraria um lugar para comer na rua. Coloquei um casaco em cima do pijama mesmo e fui para a rua. A Rua Carlos de Carvalho estava vazia, o bar fechado. Já devia passar da meia noite. E seria algum dia da semana. Eu não contava mais tempo, horas, dias e esperanças. Assim era mais fácil de suportar o fardo. Viver era um fardo.
Lembrei que na esquina da Rua Henrique Valadares ficava a noite toda uma carrocinha de cachorro quente em todos os dias da semana. O dono também não pensava no tempo, só nos transeuntes da noite. E eu era um deles.
No caminho ia olhando os moradores de rua que se amontoavam nas calçadas sob cobertores baratos. Observei que um casal trepava freneticamente naquele chão sujo, sob um lençol encardido, ao lado de outro casal que tinha duas crianças bem pequenas entre eles. Me atentei a olhar, não deveria, eles eram a margem, mas talvez, não sentisse o frio que eu estava sentindo.
Continuei a caminhar e avistei a carrocinha. Uma mesa estava ocupada por um homem. Sentei na do lado, fiz meu pedido como de costume e uma cerveja. Ele não teria vinho, é claro. Acendi um cigarro e me espreguicei. Pensei em quando amanhecesse ir a minha casa no subúrbio, afagar minha cadela já bem envelhecida, brincar com os gatos, trocar meia dúzia de palavras com meu filho e sentar no banco do jardim. Mas deixaria isso para um domingo. Senti alguém se aproximar.
“Posso te pagar uma cerveja?”. Meu pensamento todo sumiu com aquele homem a minha frente com um sorriso largo nos lábios. Era o cara da outra mesa. Com os olhos permiti que sentasse ao meu lado. Ele falava de forma sedutora, mas minha mente estava muito longe. Respondia com monossílabos. Fiz minha refeição e pedi outra cerveja. “Esta eu pago” comecei a sentir as intenções dele.
Caramba, nem lembrava se tinha tomado banho ou se estava de calcinha, só queria me abrigar do frio. Entendi que ele me convidava para um lugar mais íntimo e acolhedor. Parei para observá-lo melhor. Um cara arrumado com um grosso colar de ouro no pescoço. Por que não? Eu já não transava com alguém há algum tempo. Pelo menos não lembrava desde que larguei toda a minha vida para me esconder naquele conjugado para trabalhar no meu próximo livro. Não faria mal nenhum.
Logo estava num quarto de motel, pasmem, na mesma rua em que eu morava, aos beijos com um homem desconhecido e com hálito de cerveja. Estávamos afoitos ou com pressa para tudo terminar. Comecei a sentir tesão e ele não falava mais. Tirei o casaco e preferi não tirar a camisa. Abaixei as calças e, que merda, percebi que estava menstruada. Agora era assim, vinha o mês que quisesse. A porra da menopausa. Ele percebeu também. Mas não parecia se importar. Montou em cima de mim, na cama e me penetrou direto. Senti aquela familiar dor de sempre e pensei que ia gozar logo.
Abruptamente a porta do quarto, que estava na penumbra, foi arrombada e dois homens entraram dizendo um nome “Romualdo” e só deu tempo dele se erguer ainda com o pau dentro de mim, e levar dois tiros na cabeça. Os homens saíram depressa.
O corpo sobre o meu, o pau dentro de mim, e um peso enorme que me asfixiou totalmente. Empurrei ele com força, sem olhar o rosto desfigurado e levantei. Com o pau ainda duro e manchado do meu sangue. Vesti a calça e o casaco e quando algumas pessoas, funcionários do local, chegaram à porta eu já estava saindo correndo. Tomei um ar gelado quando saí do motel. Minha camisa suja de sangue. Respirei fundo aliviada sem ainda saber o que acontecera de verdade. Caminhei um pouco, pesadamente até a porta do meu prédio. Procurei as chaves no bolso do casaco.
Logo estava no canto do minúsculo quarto chorando. O coração acelerado. Tentei racioncinar, pensei em tomar um banho, estava suja de sangue e sêmen. Mas apenas escorreguei para cama e bem encolhida adormeci.
Quando acordei, era dia. Fumei um cigarro indo para o banheiro mijar. O café ainda estava quente na garrafa. Liguei o computador. Tinha colocado um adesivo no canto que marcava a hora, mas sabia que não era tão cedo. Estava com pressa para digitar, minha mente em ebulição.
Liguei para Firmina, ela tinha vaga para aquele dia. Olhei a lista de compras. Ainda não consegui escrever pois buscava notícias sobre a noite passada. Os noticiários me irritavam porque me situava no tempo. Até que achei a notícia de um traficante que foi executado num quarto de motel. A prostituta que estava com ele fugiu assustada. Sorri. Depois ri muito alto. O que tinha de tão engraçado? Observei de novo, as borras de café na toalha.
Resolvi que iria a minha casa no subúrbio. Mas só depois que Firmina chegasse e eu tomasse um banho e eu escrevesse meu próximo conto.