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Uma mostra

Um retrato amplo, literal e silencioso do samba carioca

Publicado

Autor/Imagem:
Roberta Pennafort

Não é sempre que uma exposição contagia o visitante já à entrada. Acontece com quem chega a O Rio do Samba – Resistência e Reinvenção, em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR). A instalação sonora de Djalma Corrêa parte da batida de um coração, acrescida passo a passo dos instrumentos que dão corpo ao ritmo: a cuíca, o cavaquinho, o pandeiro, o reco-reco. Quando adentra o espaço expositivo, depois de ver nas paredes do corredor de acesso trechos de sambas fundamentais, de Noel Rosa, Candeia, Dorival Caymmi e Chico Buarque, o espectador já está conquistado.

“A gente já ouve essa batida nos nove meses no ventre da mãe. Por isso o samba é universal. As pessoas inconscientemente fazem essa ligação”, diz Corrêa, percussionista e um dos cinco artistas convidados a criar obras especialmente para a mostra. Os outros foram Jaime Lauriano, Gustavo Speridião, João Vargas, Ernesto Neto e Leandro Vieira – os dois últimos produziram juntos. Eles fazem companhia a artistas do acervo do MAR e de instituições como o Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o Instituto Moreira Salles, que colaboraram também.

Quadros de Portinari, Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Guignard, fotografias de Marcel Gautherot, Walter Firmo, Bruno Veiga, Evandro Teixeira, réplicas de parangolés de Helio Oiticica, e objetos contam a trajetória de cem anos de samba. Dos terreiros das casas das tias baianas onde o samba carioca se firmou, no início do século 20, às escolas de samba e blocos de carnaval em sua versão do século 21.

O samba é retratado como parte da cultura do dia a dia do carioca, para além das apropriações pela indústria cultural e mesmo pelo carnaval. Entre as raridades, o prato e a faca que o lendário músico João da Baiana tocava, um turbante de 1946 de Carmen Miranda e um tabuleiro original de uma baiana, do século 19. A narrativa começa na “herança africana” e no “Rio negro”, passa pelo auge da Praça Onze, berço do samba, e chega ao samba e do carnaval como patrimônios da cidade e do País.

Pictoricamente, o samba é lido como manifestação popular de comunidades pobres. Na exposição, sua ancestralidade negra é destacada. “Os pintores quase sempre estereotiparam o universo do samba, pintando as mulheres pelo lado da sensualidade e os homens, pelo perfil de malandros e vadios. Mas não se poderia querer mais do que isso. Criar uma tela que traduza toda a riqueza rítmica, todo o encadeamento melódico e harmônico que o samba tem me parece difícil”, aponta o compositor e escritor Nei Lopes, um dos curadores, com Evandro Salles, Clarissa Diniz e Marcelo Campos.

Da repressão – que veio desde que o samba se mostrou “perigoso”, por seu poder aglutinador, como destaca Nei Lopes – veio a necessidade de resistência e reinvenção. “Já os escravos resistiram através de sua cultura. Os cantos de trabalho eram uma forma de se colocarem”, diz Evandro Salles. “Em meio a uma violência absurda, pessoas de origens e línguas diferentes mantiveram suas tradições religiosas e culturais, reinventaram suas tradições, indo dar no samba, elemento fundamental da identidade nacional”.

Sambistas de todos os tempos, como Martinho da Vila – que abriu a mostra com show gratuito no dia 28 de abril -, João Nogueira e Alcione estão em retratos na sala Encontro, onde fica a instalação Carnaval – o grito do quê?, de Ernesto Neto e Leandro Vieira. Uma escultura de rosto de 2,5 metros e expressão exacerbada criada por Vieira – artista plástico que é carnavalesco da Mangueira, uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio, e que completou 90 anos – é contida por uma trama de Neto. O prazer e a dor do samba estão ali. Ao lado, surdos podem ser tocados pelo público.

“Nós fomos impactados pela morte da Marielle Franco (vereadora negra e representante de favelas), que reverberou em mim e nele”, conta Vieira. “A gente vive numa sociedade que extermina vidas negras e pobres e, ao mesmo tempo, essa cultura está sendo celebrada no museu. Por isso não é possível identificar na obra se a expressão é de alegria ou de dor”.

Carlos Vergara, que há 40 anos trabalha a temática do carnaval em sua trajetória, “recheou” esculturas altas e ocas com restos de fantasias de desfiles. “O carnaval não é apenas uma festa popular, é um ritual da passagem do tempo. O ano não vira no 31 de dezembro nas comunidades das agremiações, mas no carnaval”, acredita. “Meu ateliê fica perto do Sambódromo e os lixeiros levam as fantasias deixadas no chão para mim. Já não são tecidos, mas memória, cor. Com todo o respeito ao Brancusi (escultor romeno), é minha ‘Coluna para o Infinito’”.

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