Quarup
Um sonho sonhado de Quincas Berro d’Água a Carlos Castañeda
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Seu aniversário estava chegando e, como era de praxe, Adriano convidou alguns amigos para um quarup. O ritual se repetia desde os seus 73 anos; ele, sem noção, achou que morreria logo e quis se despedir em grande estilo. Não morreu, mas a reunião ganhou esse nome. E se repetiu nos anos seguintes. Só que, às vésperas de completar 80 anos, sentiu que dessa vez seria diferente…
O bar era o mesmo, os amigos, os dos últimos quatro quarups (um havia batido as botas, tadinho). Boa conversa, boa bebida, muitos risos – mas de repente Adriano sentiu que deixara o corpo. Viu-se à mesa, falando pouco, ouvindo muito, e se afastou. Foi pousar (?) em uma clareira, onde havia uma grande roda de estacas pintadas, cravadas no chão. Reconheceu a coisa: caíra no meio de um ritual de Quarup, dos indígenas do Alto Xingu. Tentou aproximar-se, mas não conseguiu; percebeu que também ele era uma estaca pintada.
– Bem-vindo, guerreiro – comunicou telepaticamente a estaca a seu lado direito.
Guerreiro? Adriano fora muitas coisas na vida, até mesmo militante contra a ditadura e a desgraceira do governo bozista, mas guerreiro era forte demais.
– Não sou guerreiro – respondeu telepaticamente. – Sou um jornalista de esquerda, aposentado, e acho que ainda estou vivo!
– A maioria de nós está – respondeu a estaca. – Eu, por exemplo, estou agonizando em um hospital em Berlim. E também não sou rigorosamente um guerreiro, e sim um antropólogo, professor na universidade. Mas conseguir vencer o espaço e comparecer a este quarup nos permite usar essa designação.
– E viemos aqui para…
– Morrer, é claro! Cercados pelo respeito de nossos irmãos guerreiros. Mas, até o início da cerimônia, podemos retornar a nossos corpos velhos e doentes.
Adriano viu que indígenas cobertos de pintura corporal se aproximavam e saudavam cerimoniosamente cada estaca; não podia dizer se eram de carne e osso ou materializações, que nem ele, o antropólogo alemão e, sem dúvida, muitos outros. Começou a tremer (por dentro, estacas cravadas no solo são singularmente imunes a tremer por iniciativa própria) e lembrou do conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. O protagonista passa muito tempo no meio de um rio – a terceira margem –, até que um dia o filho lhe implora que volte, estava pronto a substituí-lo. Quando a canoa começa a se aproximar, o filho percebe o alcance do sacrifício que se comprometeu a fazer e foge, coberto de culpa e vergonha. Adriano brincara com a ideia de um Quarup, não se comprometera a partir para outro plano em um, não imaginava que isso fosse possível – mas a culpa e a vergonha estavam presentes.
– Não! Não consigo!
No mesmo momento, sua estaca se desmaterializou e ele voltou a seu corpo, no quarup paulistano.
– Orra, brother! – disse um dos amigos, o mais esporrento de todos. – Achei que você tinha esticado as canelas! Estava quieto, sem falar nada… – e deu uma de suas estrondosas gargalhadas.
– Se isso acontecer, me levem pra um último rolê, que nem no conto A morte e a morte de Quincas Berro d’Água – respondeu Adriano, com um sorriso forçado. Era sua segunda alusão literária da noite – e a primeira ficara quietinha, envolta nos pensamentos e na culpa do Adriano-estaca.
Os amigos se despediram às 11h30 (eram veínhas e veínhos, dormiam cedo). De volta a sua casa, Adriano teve certeza de que não compareceria a outro Quarup no Xingu, era uma chance única, que ele desperdiçara. E também de que poderia encontrar os amigos em aniversários futuros, mas nunca mais chamaria essas reuniões de quarup.
Em sua terceira alusão literária, pensou em um livro de Carlos Castañeda, sobre um feiticeiro indígena, Don Juan. Ele conta que, quando um guerreiro vai morrer, A Magra se detém, em respeito, e espera que ele dance sua última dança. E depois, claro, o leva. Adriano se propôs a fazer o mesmo quando a morte chegasse. Tentaria sintetizar, em movimentos improvisados, as tristezas e alegrias, as derrotas e vitórias de sua vida. E então partiria, desafiador e sem medo.
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