Uli era um gatinho português, amante de vinhaças e sardinhadas. Mais de sardinhadas, claro. Seu nome completo era Manuel Ulianov. Ulianov em homenagem a um revolucionário russo, codinome Lênin, admirado por seus escravos humanos, e Manuel porque, raios, era português. Mas todos o chamavam de Uli, e pronto.
Como todos os gatos, Uli nasceu pobre e livre, mas deu sorte de escravizar humanos bonzinhos, que moravam em uma quinta cheia de árvores, nos arredores de Lisboa. Ali Uli vivia feliz, trepando nas árvores, comendo suas sardinhas e suas porções de ração, convivendo com os gatos e cachorros da vizinhança. Eram raras as desavenças; quando surgiam, eram resolvidas à antiga portuguesa, ou seja, na porrada.
Um membro da família, porém, tirava Uli do sério: o sagui. Ele havia nascido no Brasil e, Uli não sabia como, pusera as patinhas em areias de Portugal e viera parar na quinta. O gato até achava o bicho bonitinho, com sua longa cauda e tufos de pelo para os lados do focinho, como um Einstein primata. Mas a defasagem cultural era nítida: Uli era um gato tipicamente lisboeta, urbano e sofisticado, um alfacinha, enquanto o sagui era… bem, era um bicho do mato, que nem tinha nome. Tímido e por vezes agressivo, o labrego dificultava qualquer contato social.
Uli bem que tentava. Chegava perto do macaquinho, sorria amigável e disparava:
– Olá, estás porreiro neste lindo dia, ó pá?
O sagui engolia em seco, gaguejava e respondia com palavras que fariam Guimarães Rosa babar de emoção:
– Vossinhô adiscurpe, num sei. A gente vinhemo de lejo.
Com o tempo, a resposta repetida deixou de divertir Uli e passou a exasperá-lo:
“Chiça!”, pensou o gatinho. “O parvo, que nem fala brasileiro – idioma que domino, aprendi assistindo a novelas brasileiras na televisão – atravessou meio mundo, veio do Brasil para estas bandas. Enquanto eu cá vivo o tempo todo, com os meus escravos. Não é justo!”
Pouco a pouco, amadureceu na ferinha a ideia de partir e cruzar os mares, como haviam feito ancestrais seus, que caçavam ratos nos porões das caravelas. Esse projeto ganhou força depois que Uli ouviu, no colo de sua escrava, a linda canção popular alentejana “Vou-me embora vou partir”, interpretada por Vitorino:
“Vou-me embora, vou partir mas tenho esp’rança/ De correr o mundo inteiro quero ir/ Quero ver e conhecer rosa branca/A vida do marinheiro sem dormir/ A vida do marinheiro branca flor/ Que anda lutando no mar com talento/ Adeus, adeus minha mãe, meu amor/ Eu hei-de ir hei-de voltar com o vento”.
Foi como um soco no peito, até porque Uli estava apaixonado por uma gatinha branca chamada Rosa, que morava perto. Amor platônico, diga-se, que os dois eram castrados.
A gota d’água foi escutar sua escrava recitar, sonhadora, os versos de Fernando Pessoa: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.
E assim, certa noite, depois de roçar repetidas vezes o corpinho nas pernas dos escravos e exigir mais carinhos que o habitual, Uli pulou e muro e partiu, livre como nascera.
O resto são conjecturas. Talvez Uli tenha conseguido embarcar e cruzar mares nunca dantes (por ele) navegados. Talvez tenha mudado de ideia e decidido encarar aventuras na jangada de pedra, Dom Quixote felino a investir contra moinhos de vento, canzarrões, gatos bravos e outros monstros. Ou talvez algo de ruim lhe tenha ocorrido, obrigando-o a travar sua última batalha à antiga portuguesa, com supremo desdém pelo perigo e um sorriso sob os bigodes.
O desfecho, porém, é certo: Uli há-de voltar, com o vento. Ou em carne, osso e pelos, livre como sempre vivera, à quinta de seus escravos, para encantar Rosa branquinha e os demais bichos – até o sagui – com o relato de suas aventuras. Ou, trazido pela brisa do mar, como uma memória triste e doce para todos aqueles que o amaram. Uma memória não apenas da fuga mas dos bons momentos partilhados, memória que dói no peito mas ao mesmo tempo faz sorrir.
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(Na segunda-feira, 4, a volta de Uli)