“O amplo sistema universitário público sempre foi a espinha dorsal da ciência brasileira. Por sua vez, ele está fundamentado em um forte e diversificado sistema de ensino de pós-graduação.” Publicada no Relatório de Ciências da Unesco de 2021, a afirmação de Hernan Chaimovich e Renato Pedrosa comprova o protagonismo que as universidades e seus cursos de mestrado e doutorado exercem no ecossistema nacional de pesquisa e inovação.
Em números, o documento da Unesco mostra que as instituições de ensino superior foram responsáveis por um terço do gasto doméstico bruto com pesquisa e desenvolvimento (P&D) no Brasil. Considerando a chamada tríplice hélice da inovação, os investimentos acadêmicos na área em 2017 equivaleram a 0,40% do Produto Interno Bruto (PIB), atrás das indústrias e empresas do setor privado (0,50%) e na frente dos recursos empregados pelos governos (0,26%).
Embora os dados comprovem o peso das universidades, sobretudo as públicas, na pesquisa e na inovação, essas áreas vêm sendo fortemente impactadas pelos sucessivos cortes orçamentários na Educação e, principalmente, nos setores de Ciência e Tecnologia.
A política de desinvestimento público nas áreas de P&D é percebida, por exemplo, na série histórica do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Segundo levantamento do Jornal da USP, a redução chega a 84% ao se comparar 2012 e 2021, caindo de R$ 11,5 bilhões para R$ 1,8 bilhão com a correção pela inflação.
Na outra ponta, os três principais órgãos federais de fomento à pesquisa e à pós-graduação nas instituições públicas de ensino também tiveram redução nos gastos orçamentários. O relatório da Unesco sistematiza que, entre 2015 e 2017, a média total nos cortes foi de 25%, com queda de 36% para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de 38% para a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e de 5,6% para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O cenário se torna ainda mais desanimador quando se olha para os contextos atuais. De acordo com Chaimovich e Pedrosa, as projeções são de mais redução nos gastos desses órgãos “dada a drástica queda nas receitas federais na esteira da recessão econômica causada pela pandemia da covid-19”.
Para a decana de Pesquisa e Inovação da UnB, Maria Emília Walter, a infraestrutura científica das universidades é atingida diretamente pelos cortes nessas agências de fomento. A consequência mais imediata engloba a inviabilidade financeira para a criação de laboratórios e para a aquisição e a manutenção dos equipamentos. A situação crítica é ilustrada pela gestora a partir do relato sobre o resultado do último edital de financiamento da Finep. Das cerca de 200 propostas inscritas, foi aprovada a implementação de apenas cinco.
“Há mais de 20 anos a Finep é importante financiadora das infraestruturas científicas nas universidades, com fortíssima concorrência entre elas quando os editais são abertos. Fora que o Brasil não possui uma tradição consolidada de investimentos da indústria nas pesquisas desenvolvidas no âmbito das instituições de ensino superior. A maior parte dos recursos precisa sim ser aportada pelo Estado”, defende a decana.
O presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Evaldo Vilela, usou o termo “tragédia” para referir-se ao orçamento deste ano para a autarquia, o menor da história recente. A perda é de R$ 114 milhões se comparado ao de 2020. Para se ter uma ideia, a parcela destinada para investimentos em fomento soma R$ 26,5 milhões, enquanto a demanda represada soma R$ 150 milhões.
Impacto na UnB
Alice* é doutora em Ciências e atualmente pesquisadora da área de Ciências da Vida na Universidade de Brasília. Conduz projetos financiados pelo CNPq desde 2018, mas teve a notícia de que não terá a bolsa renovada pela autarquia pelo período recomendado, apesar de aval favorável de todos os pareceristas e do mérito científico da pesquisa ter sido considerado excelente por eles. O motivo, descrito no relatório de resultado final: “infelizmente, há que se considerar que as restrições orçamentárias desse momento de exceção impedem a concessão de toda a prorrogação solicitada”.
A pesquisadora relata que os casos de bons projetos aprovados pelo CNPq, mas não implementados, vêm sendo cada vez mais frequentes. Embora não tenha percebido impactos a curto prazo em sua pesquisa, pois os recursos utilizados foram pleiteados em 2019 e aprovados de acordo com o orçamento de 2020, a não prorrogação integral da bolsa afeta as rotinas de trabalho, e isso traz reflexos para o projeto.
“Desenvolver pesquisa sem a perspectiva de continuidade é desmotivador. Projetos de excelência serão descontinuados ou sequer serão começados, tornando o cenário desolador para nós cientistas”, frisa.
Na visão de Alice, os impactos serão ainda mais significativos a partir do próximo ano, quando os recursos provenientes de editais passados se esgotarem e as pesquisas começarem a ser financeiramente inviáveis. “Como consequência, vários cientistas precisarão buscar reposicionamento profissional e parte dessa mão-de-obra altamente qualificada pode se tornar subaproveitada.”
A decana de Pesquisa e Inovação alerta para cenários preocupantes, caso os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) não sejam liberados. A professora Maria Emília afirma que o perigo de interrupção das atividades científicas é iminente e que a paralisação só não ocorreu ainda pela combinação entre aportes de anos anteriores e esforços individuais de docentes e discentes.
O Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI) calcula que a Universidade de Brasília tem uma demanda de financiamento anual de cerca de R$ 272 milhões. Além da manutenção e do aprimoramento da infraestrutura de pesquisa e inovação, esses recursos também são necessários tanto para garantir a permanência de profissionais e pesquisadores formandos na UnB quanto para atrair pesquisadores de excelência e jovens talentos.
O levantamento do DPI mostra ainda que os campi da Universidade possuem um total de 686 laboratórios, 67 núcleos, 31 centros de pesquisa e 46 infraestruturas de apoio, como bibliotecas, biotérios, usinas, fábricas, viveiros, museus e coleções. Sem contar os mais de 600 grupos de pesquisa registrados no CNPq e os quatro institutos nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs).
Pós-graduação
Outro pilar que sustenta a pesquisa e a inovação no Brasil são os programas de mestrado e doutorado, novamente com destaque para as universidades públicas. O Relatório de Ciências da Unesco sistematiza que o ritmo de crescimento da quantidade de bolsas de doutorado concedidas pela Capes foi de 14% ao ano entre 2010 e 2015. Depois, houve desaceleração e no acumulado dos três anos seguintes a alta foi de 4%, até que entre 2018 e 2019 o número de bolsas diminuiu pela primeira vez na década (-2,7%).
De acordo com o Decanato de Pós-Graduação (DPG) da Universidade de Brasília, as bolsas de mestrado e de doutorado destinadas à UnB caíram 17% entre 2019 e 2021. Levantamento feito em março de 2021 estima que o déficit por bolsas se aproxima de 1 mil. No total, 376 doutorandos e 538 mestrandos pleiteantes ao auxílio não foram contemplados, o que pede acréscimo anual de R$ 20 milhões no orçamento da instituição só para suprir a demanda.
Além de auxiliar no desenvolvimento de pesquisas com maior potencial qualitativo, pois os estudantes bolsistas precisam cumprir requisitos de produtividade e de dedicação à pós-graduação, o auxílio é um mecanismo de inclusão. O decano do DPG aponta que a UnB tem um perfil discente diverso, sendo que a maioria deles não possui renda própria e que cerca de 40% dependem dos serviços públicos de saúde e de transporte.
Estudo socioeconômico desses estudantes, feito em junho de 2020 e fevereiro de 2021, mapeou que 63% receberam o auxílio emergencial do governo federal durante a pandemia e que o perfil dos discentes da pós-graduação é composto por 60% de mulheres e por 42% de pessoas que se declaram pardas ou pretas.
Fuga de cérebros
Ao participar de evento on-line sobre os impactos dos cortes orçamentários das universidades federais, a reitora da UnB, Márcia Abrahão, destacou que as instituições públicas de ensino superior são o esteio da formação profissional de excelência no Brasil. “Se não tivermos condições de formar bem essas pessoas, estamos comprometendo o futuro”, alegou a gestora.
No encontro virtual, a presidenta da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé, ressaltou que a retenção de bolsas de pós-graduação e a falta de investimento em P&D fazem com que recém-doutores busquem oportunidades em outros países, fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”.
“Estudantes de pós-graduação e pesquisadores brasileiros são reconhecidos no exterior pela qualidade do trabalho que desenvolvem. Ao comparar o cenário no Brasil com as vantagens e perspectivas de trabalho fora, não é difícil entender essa crescente fuga”, opina a recém-doutora Alice.
A pesquisadora, que já teve a experiência de morar fora do Brasil, completa que principalmente na Europa, no Reino Unido, na Austrália e nos Estados Unidos há múltiplas possibilidades de financiamento para as pesquisas: agências governamentais, instituições filantrópicas, empresas e as próprias universidades. “É maior a probabilidade de ter projetos com mérito científico não só aprovados, mas também financiados.”
Além disso, quanto maior o montante de recursos direcionados ao desenvolvimento científico, mais fácil fica equipar laboratórios e investir em recursos humanos, potencializando os ganhos em eficiência e celeridade. Alice finaliza argumentando a importância da regulamentação da profissão “cientista” tanto para a segurança dos pesquisadores quanto para o aumento da produtividade. “Em vários países os direitos trabalhistas são reconhecidos, há remuneração compatível com a qualificação, normatização da jornada de trabalho, direito a férias e licença parentalidade.”
*Nome fictício para preservar a identidade da informante