Troca justa
‘Vá ler um livro, amiga. Deixe a casa, que eu cuido’
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em“Faço serviços domésticos em troca de leitura”, dizem os cartazes espalhados pela Vila Aurora, no Jaraguá. Trata-se de iniciativa que teve início na capital paulista e se espalha por Brasília e outros grandes centros urbanos.
Tudo começou com um grupo de atrizes da Coletiva Elas, que fez uma proposta inusitada para as donas de casa do bairro: enquanto elas realizam gratuitamente alguma tarefa, como lavar roupa, louça ou fazer comida, as mulheres leriam um livro.
Mãe de dois filhos e responsável por todas as tarefas domésticas, Patrícia Lima, de 47 anos, estranhou a proposta feita pela vizinha, mas aceitou porque dificilmente tem tempo para se dedicar a uma atividade sozinha. “O trabalho de casa é muito duro, porque nunca acaba. Sempre tem alguma coisa para limpar e nunca sobra muito tempo para que eu faça as minhas coisas. Não estou acostumada a ficar sentada lendo, enquanto outra pessoa lava a minha louça”, conta.
A atriz Rafaela Castro, de 21 anos, diz que a ideia para o projeto Cuidando da Casa surgiu da vontade de se aproximar da realidade de mulheres de outra geração. “A ideia era entender o que elas pensam sobre ser mulher, sobre as responsabilidades que têm em casa. São as nossas vizinhas, mulheres com a idade das nossas mães”, conta.
O projeto começou em 2017 e a troca já foi feita em dez casas. Segundo Rafaela, as atrizes propõem um livro e as donas de casa, um serviço doméstico a ser feito. “Muitas delas ficam tímidas, porque não estão acostumadas a ter ajuda para cuidar da casa, se sentem até culpadas.”
Christiane do Espírito Santo, de 42 anos, conta que divide as tarefas de casa com o marido e os dois filhos, mas ainda assim foi incentivada pela filha de 20 anos a participar da troca. “Ela sabe que o serviço de casa ocupa muito do pouco tempo que tenho para ler e descansar. Estudo e trabalho fora, por isso não sobra tempo pra me dedicar a atividades que sejam só minhas.”
Ela recebeu Rafaela em sua casa em um sábado. Enquanto a atriz lavava a louça, Christiane começou a ler Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis, filósofa americana que milita pelos direitos das mulheres e contra o preconceito racial. “Fiquei um pouco desconfortável de ter alguém fazendo as tarefas domésticas Fui ensinada desde pequena, e também ensinei aos meus filhos, que quem suja e usa a casa é quem deve cuidar.”
Inspiração – A proposta faz parte de um projeto para um espetáculo de teatro e dança da Coletiva Elas. O trabalho nas casas também serve de inspiração para essa peça.
Todos os livros sugeridos foram escritos por mulheres. A ideia, diz Rafaela, não é discutir ou defender o feminismo no projeto, mas propor discussão. “Muitas vezes ficamos presos na nossa própria bolha e não percebemos a diferença de concepção de mundo de alguém que está do nosso lado. Antes ou depois de elas começarem a leitura, conversamos sobre a vida, os afazeres, a família”.
Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, mostra que as mulheres dedicam aos afazeres domésticos quase duas vezes mais tempo que os homens. Em média, elas gastam 20,9 horas semanais, ante 10,8 horas para eles. O homem que trabalha fora ocupa 10,3 horas, em média, com lar e filhos. Já as mulheres que trabalham fora, 18,1 horas.