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Honestidade sem provas

Vacina indiana silencia cantilena da anticorrupção

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

Mais uma vez recorro à suspeita de adultério de Pompéia Sula, segunda mulher do imperador romano Júlio César. Nada ficou provado, mas César se divorciou, sob a alegação de que poderia haver sobre sua esposa qualquer dúvida. Como justificativa, ele divulgou uma frase representativa do seu pensamento a respeito do assunto e que até é usada para conceituar honestidade: “A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Por analogia, chegamos ao contrato do governo com a farmacêutica indiana Bhrat Biotech para aquisição de 20 milhões de doses da vacina Covaxin. De acordo com denúncia de um servidor federal ao Ministério Público, o valor de cada dose (U$ 15) seria 1.000% superior ao praticado no mercado e bem maior do que os preços oferecidos pelos laboratórios Pfizer, Oxford/AstraZeneca e Coronavac.

A apuração está apenas no início, mas não custa lembrar que, se confirmada, partiu de um governante que fez da honestidade não só seu principal discurso eleitoral, mas também a utiliza para denegrir o antecessor e qualquer um que o defenda. A suposta traição de Pompeia, ocorrida no ano de 63 antes de Cristo, jamais ficou provada. Na verdade, tudo aconteceu em um festival exclusivamente feminino. Disfarçado de mulher, Públio Clódio Pulcro invadiu a festa provavelmente para tentar seduzir a anfitriã. Foi pego, julgado e inocentado por absoluta falta de evidências contra ele. Para o poderoso imperador, ficou o dito pelo não visto.

No mundo em que a tecnologia nos vigia 24 horas por dia e que os inimigos nos espreitam até no banho, a frase de Júlio César tem de ser lida de forma inversa. Não nos basta parecer honesto. É preciso “ser honesto”, sob pena de passarmos para a história do Brasil ou do povo como servil à mesma cretina corrupção que afirmamos abominar e combater. As supostas irregularidades na aquisição da vacina foram informadas previamente àquele que não é ordenador de despesas, mas diz saber de tudo que se passa em seu quintal. Informações documentais foram levadas pessoalmente pelo deputado federal Luís Miranda (DEM-DF). Embora sua lisura já tenha sido posta em xeque, Miranda informou ao líder ter “provas contundentes” do que dizia.

Receber “provas contundentes” e se fingir de morto é, no mínimo, irresponsabilidade. Não pedir para investigar, é pior ainda. No melhor da hipótese eufemística, é conivência. Foi o que houve. Qual a diferença entre não ser corrupto e permitir que alguém sob sua batuta seja? É mais do mesmo. Luiz Miranda é irmão de Luís Ricardo Miranda, chefe de importação do Departamento de Logística em Saúde do Ministério da Saúde, que não estava inventando coisa alguma. Tanto que, conforme textual do parlamentar, o chefe da nação chegou a se compromete a acionar a Polícia Federal para apurar os documentos supostamente comprometedores.

Simbolicamente, a bandeira do Brasil era a resposta a todas as tentativas de apresentação das denúncias. Novamente a PF foi esquecida, como havia sido em episódios envolvendo acusações ao ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre exportação ilegal de madeira. Demitido com uma eternidade de atraso por não conseguir provar sua honestidade, ele só não conseguiu passar a boiada porque os touros foram mais espertos. Antes de sair, Salles ainda protagonizou soluções fáceis e menos traumáticas para o governo: pediu e conseguiu exonerar das funções o policial delator e o que o investigava. O resultado definitivo se tornou público nessa quarta-feira: Salles foi defenestrado e os dois policiais permanecem servidores da elite da União.

Assim são as criaturas que se escondem no meio de palavras candidamente chulas, em gritos contra jornalista ou em discursos pré-fabricados apenas porque não sabe mais o que dizer para seus quase ex-fanáticos apoiadores. Tudo a ver com a história de Júlio César, a revelação dos irmãos Miranda também ecoa agora nas entranhas do Palácio do Planalto. Mesmo no estágio da suspeita e acompanhado do argumento de que nada foi pago à Precisa Medicamentos, empresa que representa o laboratório indiano, o caso é um complicador para o governo, talvez tão grave como aquele em que se meteu Pompeia. Pior ainda porque não cabe mais o benefício da dúvida, já que existe um empenho programado para a compra. Em síntese, uma vacinazinha de nada pode arruinar a reputação do mito e silenciar de vez a cantilena anticorrupção.

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