Os dois primeiros dias de efetiva vacinação contra a Covid-19 mostrou um cenário bem brasileiro: fora dos padrões exigidos pelos médicos infectologistas, contrários à aglomeração, e diametralmente oposto ao que esperava o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores. Não tenho como mensurar todos os estados, mas posso afirmar que, no Distrito Federal, todos os idosos decidiram pela imunização. Também não posso jurar, mas sou capaz de afirmar que, nas filas por onde passei, havia muitos, muitos, numerosos bolsonaristas, daqueles ferrenhos negacionistas do vírus, que, desde o início de 2020, já infectou 9.229.322 brasileiros, dos quais 225.099 chegaram a óbito. O perfil entrega rapidamente a turma do rebanho.
De um lado – a maioria esmagadora -, senhorzinhos e senhorinhas felizes, alegres, sorridentes, irradiando bom humor e certos de que a CoronaVac – a vacina preferida de todos – ainda lhes garantirá bons anos de vida. De outro lado? Bem, do outro lado os que se escondem na velha e rabujenta mentira de não acreditar no remédio certo, mas que se coçam na tentativa de “corromper” emocionalmente o chefe do posto médico para serem os primeiros. Se camuflam porque não têm como esconder o óbvio: a eficácia do imunizante e o desejo de continuar vivos, pregando como bom ou ótimo o que já perceberam que não tem robustez ou prazo de validade.
Mesmo com a “rendição”, mantêm o discurso crítico aos chineses, a João Dória (precursor do medicamento comunista) e a tudo que aprenderam de ruim com os mantenedores de fake news. Pura hipocrisia, o pior dos defeitos do ser humano. Se não acreditam, não experimentem. Simples assim. Pelo menos os que agem desse modo passam a impressão de que o fazem por absoluto desconhecimento ou para “seguir” uma tacanha e obsoleta ideologia. Os adjetivos não são para agredir, mas para ilustrar que a tal da ideologia não amortiza boletos, tampouco quita impostos gerados pelos ideólogos que adoram escravizar incautos.
Situação idêntica às filas de vacinação ocorreu ontem à noite na Câmara e no Senado. Tinha aglomeração e uma vontade mercadológica incomum de agradar o dono do cofre. A diferença é que, nas duas casas do Congresso, a camelotagem por votos, comandada pelo Palácio do Planalto, era às claras. Embora a votação tenha ocorrido nas últimas horas do dia, o Mercadão de Madureira foi aberto bem cedo, com as ruas do entorno do Parlamento anunciando votos de primeira e a preços de ocasião. O valor poderia ser pago com umas emendazinhas para início de pontes, viadutos, estradas e córregos, cujas obras jamais passarão do primeiro tijolo, ou com cargos para mulher, filhos, amigos e concubinas. Tudo dentro dos melhores padrões familiares. É a velha nova política pregada pelo presidente da República.
Aprendiz de feiticeiro, Arthur Lira – novo general do capitão – foi eleito presidente da Câmara pelos próximos dois anos. Logo após a vitória, fez questão de apresentar o tamanho do regalo recebido para a empreitada. O primeiro retorno ocorreu imediatamente após ocupar o lugar de Rodrigo Maia (DEM-RJ). Sem aceitar questionamentos, ordenou a anulação da votação para os demais cargos da Mesa Diretora por entender ilegal a inscrição do PT em um dos blocos partidários depois do horário limite. Agiu como se fosse paladino da moralidade. Como está há anos luz dessa honrosa adjetivação, passou para os eleitores esclarecidos a clara motivação de sua decisão: um ensaio para o anunciado golpe de 2022.
Pode ser. Difícil será combinar com os generais de boa cepa e preocupados com o país, com a maioria que se forma no Brasil contra o desgoverno Bolsonaro e com as briosas e guerreiras mulheres alagoanas, que conheceram Lira nas páginas policiais. Como já escrevi neste espaço, muita água barrenta ainda escorrerá pelo lodaçal dos córregos políticos inacabados. O povo está acordando. Estamos só na metade da 56ª. Legislatura (equivalente à duração regular do mandato dos deputados, que é de quatro anos). Expressivo número de parlamentares e de eleitores duvida que Arthur Lira, líder do Centrão, cumprirá com todas as promessas feitas ao chefe do Executivo federal.
Será uma tarefa praticamente impossível. Não é fácil agradar os gregos do grupo que normalmente se fantasia de raposa para invadir galinheiros. Nascido em um dos mais lindos litorais do país, o deputado alagoano sabe que o oceano político é infestado de peixes carnívoros. Como cristão e temente a Deus, sugiro que ele não se atenha apenas a uma religião. Hoje é dia de Iemanjá, rainha do mar. Ele deve começar pedindo proteção à divindade africana, considerada a mãe de todos os adultos e dos orixás. É a mãe com filhos como peixes. Também pode optar pelos princípios católicos, cujos seguidores comemoram o 2 de fevereiro como a data em que José e Maria, após 40 dias de seu nascimento, apresentam Jesus ao templo de Jerusalém e ao mundo. Sobre os evangélicos, não tenho sugestões. Maioria dos apoiadores do presidente, eles não acreditam em nada. Às vezes, nem no que dizem.
*Wenceslau Araújo é jornalista