Na canção Nos bailes da Vida, o compositor e intérprete Milton Nascimento sugere que o artista tem de ir aonde o povo está. A sugestão é bastante cristalina quanto ao segmento. Sem medo de errar, no rol dos artistas estão incluídos cantores, atores, atrizes, pintores, escultores, circenses, músicos e, com algumas exceções, jogadores de futebol, de vôlei ou basquete. A exceção aos atletas é lógica, porque, na maioria das vezes, é o povo quem vai aonde eles estão. A pandemia virou o mundo de ponta cabeça. Buscar o público é natural para uma apresentação, um musical, uma cena e até uma jogada. Nesse caso, a licença poética pode ser usada no texto, no espetáculo, no concerto e no drible. Tudo é permitido, inclusive em locais impróprios, como o interior de uma aeronave. Desde que haja disposição e permissão da plateia, o artista pode armar o palco e dar seu showzinho.
O temor para um ambiente fechado é o respeitável público ser surpreendido por um humorista desbocado ou desprovido de texto. Sem ter o que e como dizer, esse provável gênio do besteirol corre o risco do pior dos cenários para um obreiro da arte: a vaia. Pior ainda é um político, governante, ministro de Estado, magistrado ou candidato a ditador adentrar a cabine de um avião de carreira lotado para uma autopesquisa (análise de traços pessoais, qualidades e estruturas de sua própria personalidade). Em se tratando do Brasil de 2020 e 2021, tudo é possível, mas tentar auferir popularidade dentro de uma aeronave nem sempre é alvissareiro. Pelo contrário. Comumente é contraproducente, na medida em que a única coisa que a maioria dos passageiros não quer é dar voz ao perfil narcisista de ninguém, mesmo que esse ninguém seja um pretenso artista próximo de assumir uma carreira solo.
Ainda que tenha algum protagonismo, a esse tipo de artista cabe liderar ou governar e deixar para o povo as avaliações. Com ou sem permissão oficial, invadir a cabine de um jato como se o “aparelho” fosse seu é, no mínimo, preocupante. O figurante tem o direito de se apresentar. Entretanto, ao fazê-lo tende a ser humildade para as eventuais consequências. Faz parte do jogo tentar, se dar mal, sofrer um revés inimaginável e ouvir o que não quer. Para imagens já desgastadas pelo tempo, terrível é perder a esportiva, o restinho da educação que finge ter e vociferar o que ninguém gostaria de ouvir, nem mesmo os eventuais seguidores a bordo, que certamente resmungaram quando ouviram a sugestão de trocar o Boeing ou a Airbus por um jegue. Ou seja, o que estava ruim ficou péssimo.
Como lição, podemos afirmar que um astro ser vaiado dentro de um meio de transporte elitista é ruim. Para um mito, que se acha acima do bem e do mal é um inferno. Imagina ocorrer isso no Rio de Janeiro, dentro de um trem da Central do Brasil, no metrô em São Paulo ou no BRT de Brasília. Fica a dica. Em síntese, a glorificação faz bem àqueles glorificados pela arte ou pelo voto, consequentemente pelo povão. Aos desequilibrados e aprendizes de feiticeiro restam a lei, a desconfiança, a impaciência, a derrota e, por fim, o ostracismo. Somos um país golpeado pela pandemia. Por isso, antes de se mostrar aos passageiros de um avião, melhor que o mandatário tivesse tentado salvar pelo menos parte das quase 500 mil vidas perdidas para a Covid-19. Nem a bordo perdeu a pose e preferiu perder tempo negando a doença e fazendo pouco caso da morte.
Pior foram e são as “viagens” pelas redes sociais. Nelas, a regra das contas da matemática fica limitada à soma e multiplicação dos números favoráveis. Os demais são escancaradamente escanteados. Um ano e três meses após o brasileiro ser abatido pelo silêncio de um vírus mortal, os estatísticos “oficiais” teimam em divulgar prioritariamente os dados relativos às pessoas que, não importa como, conseguiram sair do outro lado. Claro que são dados significativos, mas não devemos olvidar que, se tivéssemos agido a tempo, a contabilidade nacional estaria bem longe do meio milhão de óbitos. Se a necessidade é falar em volume, a conta do descaso é ainda mais relevante. A gigante Índia, com regiões mais pobres do que as nossas e uma população sete vezes maior do que a do Brasil, registra até agora cerca de 110 mil mortes a menos. Competência ou lucidez?
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978