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Valfredo, o gigolô, se deu bem com Gigi e Lalá

Valfredo José Gouveia da Mata e Silva, apesar de toda pompa do seu nome, herdara apenas um pequeno apartamento no Gama, que ficava bem em cima da antiga padaria da família. Poderia ter seguido os passos do pai e, literalmente,  metido a mão na massa. No entanto, desde muito cedo percebeu que, do ofício do seu velho, gostava apenas de comer aquele pão bem quentinho com algumas fatias finas da mortadela especial. À moda da casa, conforme o enorme cartaz atrás do balcão.

Sem muito tutano pros estudos, mal terminou o ensino fundamental. Valfredo não conseguia entender o motivo pelo qual alguém pudesse passar a vida inteira entretido com raízes quadradas, esses e mais aqueles afluentes da margem esquerda do rio Amazonas, tantas orações subordinadas. Insubordinado que era, ele é que não iria perder seu precioso tempo com tantas informações inúteis.

Aos dezoito caiu nas graças de uma jovem senhora moradora do Lago Sul. Não tão jovem assim, diga-se de passagem, ainda mais para um rapaz que mal havia trocado as fraldas pelo jeans libertador. Seja como for, o sacrifício valia a pena. Nada de acordar bem cedinho, nada de suar o suor dos paupérrimos trabalhadores. Tudo bem que Valfredo teria que cumprir suas obrigações de alcova quase diariamente, mas a flor da idade e os hormônios nas alturas lhe garantiriam muito fôlego para satisfazer todas as luxúrias daquelas carnes quase sem viço. Aliás, a velha tinha nome e sobrenome: Dolores Gonçalves de Magalhães, uma herdeira de verdade.

O tempo, no entanto, provou que até os casais arranjados possuem lá as suas agruras. De noites quase contínuas de amores febris, Dolores cada vez menos buscava os braços do seu quase gigolô. Ela ainda sentia arrepios toda vez que Valfredo a pegava por detrás e lhe tacava um ardente beijo no pescoço. Todavia, por recomendação do geriatra, a osteoporose estava muito avançada. Então, nada de movimentos bruscos.

Como existe um ditado ou algo que o valha que diz que, quando algo não está sendo preenchido, alguém irá se apoderar dessa lacuna, não tardou e Dolores se apaixonou novamente. Sim, isso mesmo! A velha ficou encantada quando uma amiga de longa data, a Rosa, lhe presenteou não com uma, mas com duas buldogues. Valfredo, que nunca tivera alergia à cachorro, passou a se coçar como se tivesse urtiga. No entanto, para não perder suas regalias, sempre demonstrava ter o maior afeto por Gigi e Lalá. Tanto é que sempre fazia questão de levá-las para passear pelos imensos jardins da mansão.

É verdade que, por duas ou três vezes, Valfredo tenha tentado dar fim naquelas cachorras. Mas logo percebeu que não havia nascido para atos de violência. Mesmo assim, a cada dia aumentava seu ódio pela Gigi e, especialmente, pela Lalá, que cismava em lhe lamber a cara todas as manhãs. Pois é, as duas dormiam na mesma cama que o casal. Se isso não bastasse, a cachorra ainda tinha o péssimo hábito de roncar e soltar flatos sem qualquer cerimônia.

Ainda bem que não há mal que dure para sempre. E isso aconteceu logo numa manhã chuvosa de domingo. Depois de quase 15 anos dormindo na mesma cama, Valfredo se arrepiou todo ao sentir o gélido corpo ao seu lado. Era Dolores. A velha foi embora sem nem mesmo dizer um tchauzinho. Ele ficou até triste, pois percebeu que já havia se acostumado com o cheiro de naftalina da quase amada.

O enterro foi no dia seguinte, com direito até à marcha fúnebre, como Dolores havia pedido. Quanto ao testamento, este foi lido quase um mês depois, quando todos os parentes, finalmente, puderam se reunir. Obviamente que Valfredo estava presente. Aliás, na primeira fila de cadeiras diante do advogado da família da defunta. Todos os herdeiros estavam ansiosos, todos desejosos do devido quinhão. Algumas poucas joias ficaram para a pequena Laís, sobrinha-neta favorita de Dolores; o faqueiro de prata foi herdado pela única irmã. E a mansão? E a mansão? E a mansão? Dolores estava atolada em dívidas, a mansão foi direto para as garras do banco.

Valfredo parecia o mais devastado pela falência da velha. Enquanto todos se levantavam para ir embora, eis que o advogado se vira para o agora viúvo e diz que ainda faltava revelar o último desejo da defunta. Ela queria que as buldogues ficassem com Valfredo, já que ele era a única pessoa na qual ela depositava plena confiança, haja vista o amor que ele sempre demonstrou possuir pelas duas. Sem forças nem coragem para declinar de tal desejo da falecida, Valfredo sorriu aquele sorriso amarelo e pegou as cachorras no colo.

Uma semana mais, Valfredo e as cachorras foram despejados da mansão. Sem lugar para onde ir, ele voltou para o pequeno apartamento que herdara. É óbvio que levou as buldogues. Não por compaixão, muito menos por amor. O ódio àquelas cachorras o consumia dia a dia, até que, certa manhã, ele acordou bem cedo e, decidido, resolver dar cabo das duas.

Já rua, o homem desceu a ladeira puxando as cachorras pela guia. Sua mente maquiavélica pensava em vários planos para, finalmente, se ver livre daquelas pulguentas. Ora pensava em jogá-las no lixão, ora no rio que passava logo ali desfilando todo o esgoto do bairro. Foi em direção ao rio. O sorriso cínico nos lábios, pura satisfação ante algo tão desejado. Eis que, de repente, ele ouve uma voz desconhecida. Era a de uma jovem senhora em um luxuoso conversível. Não tão jovem assim, diga-se de passagem. Mas nada que um Valfredo, desesperado que estava, pudesse deixar escapar.

– Que mocinhas lindas! São suas?

– Ah, sim! São os amores da minha vida. Esta aqui é a Gigi. Já esta fofura aqui é a Lalá.

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