Sangue no quilombo
Velhas correntes matam Nicodemo, o garanhão negro
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Nicodemo, um negro pra lá de 1.80, sentado em duas cadeiras sobrepostas para suportar seus mais de 130 quilos, estendia a mão direita, sucessivamente beijada por lábios masculinos e femininos, afagava os cabelos do afilhado com a esquerda, e sorria.
Passava um pouco das 11 horas. E a cena se repetiria por 28 vezes seguidas. Os apadrinhados, em fila, tinham razões de sobra para aparecer. Afinal, não era todo dia que o padrinho completava 90 anos.
A cerimônia foi precedida por uma jovem mulata de 16 anos e os 11 filhos de Nicodemo – desses, oito mulheres – de outros casamentos. Não que ele alimentasse um harém. Mas as esposas foram morrendo e o velho se recusava a ser escravo da solidão. A filosofia dele era simples. Esposa morta, mulher posta.
A festa seria regada a feijoada como prato principal. Mas havia os mais variados petiscos. Desde fatias de uma tenra carne de bode na chapa, a caranguejos, guaiamuns, siris, ostras, sururu e outros frutos do mar. Além de sarapatel, claro. Porque confraternização de negro nordestino sem sarapatel, não é festa. É um mero encontro atemporal.
A bebida jorrava de torneiras de pequenos barris de carvalho. Uma cachaça cristalina, perfumada, que não se bebia. Era degustada saborosamente. De álcool, só cachaça. Também não se via nenhum tipo de refrigerante. Mas as jarras de sucos de frutas naturais multiplicavam-se sobre as mesas. De abacaxi a umbu, passando por cajá, manga, pitanga e outras iguarias colhidas da terra onde se plantando, tudo dava.
O badalar de um pequeno sino anunciou a fumegante feijoada. As crianças primeiro. Exceção para os bebês que se alimentavam em peitos fartos. Eram os tataranetos, sementes que brotavam para manter viva a história de Nicodemo.
Na cabeceira da mesa principal, Nicodemo deu sua última gargalhada. Por trás dele surgiu Abimael, arrastando grilhões enferrujados. Não era tão alto, mas tinha punhos fortes. E estando Nicodemo sentado, foi fácil estrangulá-lo.
Depois, com voz gutural, sugeriu que os comensais se servissem. Ato contínuo, pegou Marilu, feita viúva, e seguiu para a casa dele. A filha, ainda virgem, não iria servir de canteiro para fazer aflorar sementes e gerar mais herdeiros para o líder do quilombo.
*Promessa da literatura brasileira, Priscilla inaugura um novo espaço dominical de Notibras, destinado a contistas e cronistas de todo o País.