O homem acordou, não sabia as horas, não fez questão de sabê-las, apesar da escuridão quase completa, caso não fosse por uma nesga na cortina que permitia a entrada da luz de um poste lá embaixo na calçada. Esticou a mão e pegou o maço e o isqueiro na cabeceira. Sabia que não haveria problema, poderia acender um cigarro, já que a esposa falecera há quase dois meses.
— João, o cigarro vai te matar.
Era como se a mulher ainda estivesse ao seu lado na cama.
— Beth, meu amor, todos iremos morrer um dia.
A voz do sujeito saiu carregada de alcatrão, enquanto círculos de fumaça se desfaziam no ar. Era algo que, ainda muito jovem, aprendera com um amigo do seu falecido pai.
— João, precisa fazer movimentos ritmados que nem samba dos bons.
O então rapazola, apesar de nunca ter sido bamba dos pés, também nunca fora ruim da cabeça. Entendeu aquilo como metáfora e levou tal ensinamento para a vida. É verdade que impressionou algumas moças, com quem dividia cigarros e, quando a coisa avançava, beijos e carícias.
João, finalmente, decidiu se levantar. Foi até o banheiro, lavou o rosto. As olheiras, cada vez mais enegrecidas, acusavam noites em claro. Pigarreou, mas não teve ânimo de cuspir. Olhou para o lado e viu a tampa do vaso aberta.
— João, quando é que você vai aprender?
A falecida quase convenceu o sujeito, mas este logo desistiu. Afinal, para que ele iria abaixar a tampa, se não precisava mais encarar a consternada expressão da esposa? Por um instante, João encarou seu reflexo no espelho, chegou a vislumbrar uma furtiva lágrima e, instintivamente, passou o dorso da mão direita no olho esquerdo.
Foi à cozinha preparar uma xícara de café solúvel, já que era o único que se atrevia a fazer. Sentia falta do cheiro de café de verdade que tomava conta do apartamento todas as manhãs. Beth sabia o ponto exato da temperatura da água, que não poderia ferver. De tanto vê-la preparando a iguaria, João acabou aprendendo. Não sabia se sairia com o mesmo sabor, mesmo porque jamais se atreveu a tentá-lo. Agora, então, seria como se roubasse mais uma das doces lembranças que insistia em manter.
— João, por que se casou comigo?
— Hum… São tantos motivos, meu amor.
— Bela resposta de mentiroso.
— Não.
— Como não? Se soubesse ao menos um, diria.
— Seu café!
— Meu café?
— Sim. Você faz café como ninguém.
— E o que mais?
— Tudo!
— Tudo o quê, João?
— Tudo! Seus lábios…
— Meus lábios?
— Adoro a marca do batom que você deixa na xícara. Sabia que é a última coisa que lavo?
— Sério?
— Sério. Olha que coisa mais linda essa marca de batom na sua xícara.
Em pé na sacada, João dá o último gole no café, deposita a xícara sobre a mesa de canto. Acende outro cigarro, faz círculos de fumaça, que ganham o mundo. Depois da última tragada, amaça a ponta do cigarro no cinzeiro.
Debaixo do chuveiro, as lágrimas se misturam com a água que cai sobre seu rosto. Quase desistindo, ele ouve a finada.
— Reage, meu amor! Tudo vai ficar bem.
O viúvo, quase prestes a sair para mais um dia de trabalho, abaixa-se para amarrar os sapatos. Levanta-se e, antes de ultrapassar a porta do quarto, olha para trás.
— Ah, João, você não aprende mesmo! Outra vez a toalha molhada sobre a cama.
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Eduardo Martínez é autor do livro 57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’
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