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Velhinhos têm dia de risos a dois passos do paraíso

Leitor assíduo de obras memoráveis e amante inveterado da boa música, descubro a cada dia, sem margem de erro para cima ou para baixo, que fiz parte de uma das melhores gerações dos séculos XX e XXI. Lendo Mário de Andrade, tive certeza daquela máxima de que, um dia, a gente liga o rádio do carro e ouve uma música qualquer. O carona não percebe, mas aquela melodia, aquela letra, já fizeram parte de nossas vidas. Foi o fundo musical de um amor ou a trilha sonora de uma fossa.

Novamente parafraseando Mário de Andrade, mesmo que tenham se passado anos, a memória afetiva não obedece a calendários, não caminha com as estações. Foi o que ocorreu comigo nesse fim de semana: voltei no tempo e me lembrei daquele momento, daquela época.

A convite do irmão Gersão, tomei banho com sabonete Phebo, usei a colônia Contouré, Leite de Rosas nas axilas e fui assistir ao show do The Platters, grupo norte-americano criado em 1952. Cá com meus botões, imaginei que encontraria quatro ou cinco cantores caquéticos se comunicando por meio de intérpretes de Libras e usando andadores para locomoção.

Tive essa quase certeza ainda do lado de fora do teatro. O público que se aglomerava na entrada era o sinal evidente de que eu não estava errado. Maioria de comportadas velhinhas de perucas, cachecóis enrolados no pescoço e chapas bem acima das gengivas, a plateia, somado o tempo de vida, ultrapassava fácil a idade de Cristo.

Nenhuma estava com as protuberâncias nadegais de fora. Por decisão corporativa, pouparei os homens, mas não posso – e não devo – deixar de lembrar que, afora as bengalas com tripé, boa parte dos valetes parecia recém-saída de uma longa cirurgia de próstata, daquela que obriga o sujeito a ser eterno usuário do Viagra.

Não era o meu caso, tampouco do Gersão, menino paraibano que, por conta das fortes dores na virilha cervical, ainda se convalesce de uma demorada circuncisão prepucial. Nada demais para um homem cuja virilidade é conhecida de toda região do baixo jornalismo.

Detalhes descabidos e desnecessários à parte, o show foi inesquecível e imbrochável, apesar do chororô quando o performático tenor/vocalista Kevin Carroll, atual líder do conjunto, desfilou sucessos como Only You, Smoke Gets In Yor Eyes, The Great Pretenders, May Prayer, You’ve Got The Magic Touch e Remember When. Ao lado da soprano Hazel Mitchell-Bell, uma das primeiras-damas do Jazz na América, do tenor/barítono Bryan A. Evans e do também tenor Alphonso Boyd (Al Boyd), fez os velhinhos (eu incluído) voltarem a ser meninos.

Ainda que por conta de cavalares doses de Vick Vaporub, Merthiolate e Pomada Minâncora, a força, a vocalidade e o remelexo dos cantantes de farta idade são a prova de que a memória é contrária ao tempo. Em outras palavras, enquanto o tempo leva a vida embora como vento, a memória traz de volta o que realmente importa, eternizando momentos.

Na noite do The Platters fiz de mim o próprio poema de Mário de Andrade: “Diante do tempo, envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente parte. Porém, para a memória, ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis”. Eu e Gersão, o menino velho agora sem a fimose. Voltemos ao show. Informado previamente que os ingressos haviam se esgotado nos três primeiros dias de venda, fiquei triste ao vislumbrar o teatro com apenas metade de suas dependências preenchida.

Como jornalista que não perde a notícia, fui assuntar e descobri que 50% dos velhinhos não foram porque esqueceram o dia do evento. Os outros 50% não conseguiram a tempo autorização do filho mais velho para circular tarde da noite. E saibam que a festa começou às 20h. Coisas dos mais novos que não aceitam a juventude dos idosos. Embora more no quarto andar, eu fugi pela janela do quarto. Na queda, o trem quase vira uma omelete.

Salvou-me a saqueira, companheira inseparável, infurável e inenarrável dos que já dobraram o cabo e os fios da Boa Esperança. Lá pelas tantas – talvez meia hora de show – o cerimonialista anunciou uma pausa para a sopinha coletiva, regada a água sem gás temperada e a Grapette e Crush, dois refrigerantes que disputavam a preferência da meninada dos anos de ouro.

Com uma fome de pelo menos quatro horas, eu e Gersão ficamos fora da sopa e da canja servida para o povo vip. Simplório, mas determinante, o motivo foi a falta de um babador. Não tivemos oportunidade de forrar o bucho, mas, apoiados pelos aplausos dos “coleguinhas” da plateia, aclaramos nossa capacidade de eternizar coisas boas dentro da gente. Não vimos tantos, mas os poucos amigos da juventude que reencontramos depois de anos nos deram a certeza do quanto é bom voltar a se comportar como adolescentes bobos e imaturos.

Tietamos a meninada do conjunto como há 50 anos. Os cabelos brancos, as chapas, as artroses e as rugas não tiveram a menor importância. Importante foi resgatar as pessoas que fomos, garotos e meninas cheios de alegria, engraçadinhos, capazes de atitudes infantis e debiloides, como éramos nos anos 50, 60, 70 e 80. Por uma hora, uma hora e meia estivemos a dois passos do paraíso. Que o The Platters venha mais vezes.

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