Minha infância foi maravilhosa. Foi mesmo! Durante os tempos de aula, era na cidade. Mas bastava chegar as férias, corria para a liberdade da roça, lá na fazenda dos pais da minha mãe. Vovó Jurema e vovô Horácio. Eita, que saudade!
O casarão era enorme, cheio de quartos, tanto espaço, que eu, meus irmãos e primos nos perdíamos. Ao redor tinha de tudo: curral, galinheiro, chiqueiro, um terreno sem fim, o rio lá embaixo. Minha avó, apesar de amorosa, nos tratava com certo rigor.
— Primeiro, as obrigações; depois, a devoção.
E ai de quem risse durante o terço. Era aquela lapada de vara de marmelo no traseiro. Meu primo Antero, esperto que nem ele só, colocava capim dentro da calça para amortecer as pancadas.
A despeito desse modo de educar, vovó Jurema sabia que precisávamos correr livres para gastar energia de criança. No entanto, ela também era especialista na hora de atrair todos os netos quando chegava a hora da fome. Bastava abrir a janela da cozinha para que o cheiro do almoço chegasse a todos nós. Era uma correria só.
— Vão lavar as mãos, que não quero menino lambão na minha mesa.
Tio Isidório, que morava a uns quinhentos metros da casa dos meus avós, era contador de causos. Por isso, logo após o jantar, que sempre acontecia às 17h, quando a luz do dia ainda fazia sala, caminhávamos até a casa do nosso parente. Saíamos logo após comermos e íamos em fila indiana por uma trilha, com o capim alto dos lados.
Quando chegávamos, meu tio dava um pedaço de rapadura para cada um de nós. Em seguida, desandava a contar os causos. Não sei se era de propósito, mas quase sempre eram histórias de assombração, que ele jurava ter acontecido por aquelas bandas. Lembro bem que todos nos entreolhávamos assustados, mas não perdíamos nenhuma palavra sequer. Ansiávamos pelo final, que sempre era apavorante.
Depois de tio Isidório terminar, precisávamos retornar para o casarão dos meus avós. O problema é que a escuridão já havia tomado o lugar. De tão densa, que nem lua cheia era suficiente para iluminar o caminho de volta. Por conta disso, ninguém queria ser o primeiro nem o último da fila. Tirávamos a sorte e, depois, corríamos tanto, que tenho a impressão de que nem tocávamos no chão, parece que levitávamos. Vovó, assim que entrávamos correndo na casa, ralhava.
— Que é isso? Tão malucos? Até parece que viram alma penada.
Mergulhávamos na cama, cobríamos a cabeça e os pés. Ficávamos conversando por um tempo, até que um a um adormecia. Ninguém queria ser o último a dormir, como se os fantasmas soubessem quem ainda estava acordado.
No dia seguinte, com a claridade de volta, parecia que todos havíamos esquecido do medo que sentimos na noite anterior. Os dias corriam ligeiros que nem cavalo desembestado, até que íamos para a casa do tio Isidório. Quanto ao medo, só lembrávamos quando víamos o breu lá fora.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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