Depois de 43 anos sem ter autorização para alterar a peça orçamentária no Brasil, a Constituição de 1988 devolveu ao Legislativo o poder de participar da elaboração da lei orçamentária. De acordo com as novas regras adotadas na redemocratização, a iniciativa da proposição do orçamento é de inteira responsabilidade do Executivo.
Na prática, somente ministros e presidente podem estabelecer e definir quais obras e políticas públicas vão ser realizadas e qual aporte financeiro cada uma delas vai receber. Nesse cenário, caberia ao Legislativo somente duas principais atribuições: (i) escolher em quais dessas obras e políticas deseja alocar mais recursos e (ii) apreciar e aprovar a proposta de lei orçamentária elaborada pelo Executivo.
Mas o famoso “Orçamento Secreto” altera essa participação do Legislativo no orçamento. Mas o que muda, afinal?Até 2019 deputados e senadores só conseguiam alocar recursos na Lei Orçamentária Anual (LOA) por meio de três principais modalidades de emendas de receita:
1. individuais: cada parlamentar decide onde alocar recursos, dentro de um teto específico, para obras já definidas pelo Executivo;
2. de bancada: são emendas coletivas, elaboradas por deputados do mesmo estado ou região, que necessitam, obrigatoriamente, da assinatura e concordância de dois terços dos parlamentares de um mesmo estado. Nessas emendas também há limites para a quantidade e os valores dos projetos financiados;
3. de comissão: são emendas coletivas que cabem às comissões permanentes e, diferentemente das duas outras modalidades, só possuem limites de quantidade.
Desde 2019, no entanto, o atual governo recriou a modalidade conhecida como emenda do relator. Durante o processo de apreciação da peça orçamentária no interior do Legislativo uma Comissão Mista (constituída por deputados e senadores) é formada. Tal como as demais proposições legislativas que circulam no Congresso, a LOA também ganha um relator – denominado de relator geral – que deveria obrigatoriamente analisar a proposta da lei orçamentária e emitir um parecer.
Cabe aqui destacar que durante esse processo de análise, o relator geral deveria, por meio de emendas de cancelamento e remanejamento de despesas, sugerir melhorias e modificações na peça orçamentária.
Contudo, as atribuições do relator geral sofreram importantes modificações. Utilizando-se do poder de emendar a LOA, o relator geral ganhou a autorização para, ao longo do ano orçamentário, alocar receitas em despesas já presentes na lei. Apesar da semelhança com as emendas individuais, o que chama a atenção e preocupa os especialistas é que essas emendas não possuem limite de recursos e nem de quantidade, ou seja, o relator geral ganhou o poder de alocar recursos de forma ilimitada e sem autorização prévia.
A denominação da alocação de tais emendas como “orçamento secreto” provém, no entanto, da segunda característica que essas emendas carregam: tais emendas não possuem a identificação da destinação do dinheiro. Apesar do relator geral informar o Ministério em que os recursos serão alocados, não existe qualquer outra informação divulgada sobre quem será beneficiado com o dinheiro. Na identificação das emendas de relator, a única informação que existe é a de que elas pertencem à categoria “emendas de relator”.
Só no ano de 2021, a LOA reservou para o atendimento das emendas de relator geral mais de R$ 16,8 bilhões, valor bem superior ao das emendas individuais, cuja previsão de gasto é de R$ 9,7 bilhões. A suspeita, segundo investigação do jornal O Estado de S. Paulo, é a de que o relator geral da proposta da LOA e o governo estejam usando tais emendas como “moeda de troca” para comprar o apoio de parlamentares em votações de propostas de interesse do Executivo. Por não possuírem a necessidade de identificação do beneficiário, o relator geral da LOA distribui os recursos para que parlamentares aliados os utilizem em benefício de suas bases eleitorais. A recriação da modalidade das emendas de relator marca um retrocesso no processo de transparência da elaboração e execução da Lei Orçamentária no país.
Ao longo desses 43 anos de retomada da participação do Legislativo no orçamento, importantes resoluções e leis foram adotadas justamente para que o processo de alocação do dinheiro se tornasse mais transparente. No que tange especificamente o relator geral na LOA, desde 1995 sua atuação estava restrita ao cancelamento e remanejamento de despesas. Não é mera coincidência o fato de que um dos maiores esquemas de corrupção da Nova República, conhecido como “os Anões do Orçamento”, foi possível em um período (de 1988 a 1995) em que o relator detinha essa mesma prerrogativa. Se a história é uma boa professora, essa é uma lição que deveríamos ter aprendido.
*Doutoranda em Ciências Políticas na USP e pesquisadora do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB).