As primas
Velório de tio, filme de terror e Sultão, inocente, leva a culpa sem fazer nada
Publicado
emAlice e Juliana, primas de 15 anos, há tempos planejaram passar o final de semana juntas, quando poderiam assistir a filmes de terror e, melhor, fofocar pessoalmente, já que o faziam todos os dias através de mensagens pelo celular. Juliana, que morava na Asa Norte, dormiria na casa da parenta, que morava no Lago Sul. Tudo certo, mas eis que o telefone da Lúcia, mãe de Juliana, toca.
— Oi, Felipe! Há quanto tempo!
— Oi, Lúcia. Desculpe pelo sumiço, mas você sabe como são as coisas. Muito trabalho aqui no banco.
— Sei como é. Aqui também não tá fácil.
— Minha irmã, preciso te falar uma coisa.
— Pois diga. Aconteceu alguma coisa?
— Tio Carlos.
— O que tem ele?
— Ele faleceu hoje.
— Nossa! Não acredito! O tio Carlos?
— Pois é. Ele andava com uns probleminhas de saúde.
— A velha diabete.
— Sim.
— Não resistiu.
— Estou aqui com a Márcia velando o corpo. Vamos virar a noite, o enterro vai ser amanhã cedo.
— O Paulo e eu vamos aí ficar com vocês.
— Não precisa.
— Como não precisa? Já se esqueceu que o tio Carlos era o meu padrinho?
— E como iria me esquecer disso? Ele sempre te dava os melhores presentes.
Assim que se despediu do irmão, Lúcia, cara de choro, olhou para Juliana.
— O que foi, mãe?
— Tio Carlos morreu.
A menina, apesar de nunca ter sido próxima ao velho, sabia da ligação de sua mãe com ele. Disse que iria acompanhá-la, mas Lúcia preferiu deixá-la na casa do irmão, pois Alice iria passar a noite sozinha. Aliviada por não ter que passar a madrugada velando o defunto, a guria fingiu resignação. Seja como for, o plano de dormir na casa da prima continuava de pé.
Lúcia e o esposo deixaram a filha no Lago Sul, onde Alice a esperava. As garotas se despediram dos adultos, que foram velar o corpo do tio Carlos. Em seguida, as primas, mãos dadas, foram para a sala, onde ficaram escolhendo qual terror iriam assistir. Enquanto isso, conversaram amenidades até que Alice indicou um filme.
— Irmã Morte!
— Ai! Deu até um frio na barriga.
— Também fiquei, Ju.
Luzes apagadas. Sentadas no amplo sofá, cada guria com seu copo de refrigerante na mão, uma bacia enorme de pipoca entre as duas, as primas começaram a assistir à película. A cada cena, a tensão aumentava no ambiente, provocando risos nervosos.
Quando o filme já estava pela metade, Alice sentiu vontade de fazer xixi. Para não ficar sozinha, Juliana acompanhou a prima até o banheiro.
— Não quer fazer xixi também, Ju?
— Agora tô com vontade.
Após se aliviarem, as primas, mãos dadas, voltaram para a sala. No entanto, elas soltaram um grito desesperado. Era nítido o ruído que vinha da sala.
Agarradas, Alice e Juliana começaram a imaginar coisas. Sentiram-se culpadas por não terem ido ao velório do tio Carlos. Será que o defunto as estaria punindo? As garotas juraram que nunca mais fariam pouco caso da partida de um familiar, quando, abraçadas, foram caminhando lentamente para a sala.
Alice começou a tatear a parede em busca do interruptor para acender a luz. Quando o encontrou, o empurrou para baixo. Um som horripilante e o berro das primas tomaram conta do ambiente, enquanto Sultão, o gato da casa, atravessou a sala, passou pelas garotas e foi se esconder em algum cômodo no andar de cima.
Era nítido o pavor nos rostos das primas, até que elas se entreolharam e começaram a rir. Chegaram às gargalhadas. As duas entenderam o que havia acontecido. Sultão, ao se deitar no sofá, acabou acionando o controle da televisão, fazendo com que o filme recomeçasse.
Após terminarem de ver “Irmã Morte”, Juliana e Alice telefonaram para os pai e perguntaram como as coisas estavam lá na capela. Surpresos, Lúcia e Felipe disseram que estava tudo bem.
— Papai, a Ju e eu queremos ficar aí com você e a tia Lúcia.
— Alice, mas já está muito tarde. Aqui é cansativo.
— Mas, papai, família é assim mesmo.
Felipe, então, foi buscar a filha e a sobrinha. Todos velaram o corpo do tio Carlos até que, quando amanheceu, ele foi enterrado. Apesar da dor, os parentes se sentiram aliviados.
Alice e Juliana, vez ou outra, assistem a um filme de terror, quando se lembram do pavor que tomou conta das duas quando viram “Irmã Morte”. Elas não sentem tanto medo hoje em dia, mesmo diante das cenas mais macabras. Talvez porque nem desconfiam que, naquela noite, Sultão não estava deitado no sofá, mas na poltrona ao lado.
………………………..