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Vemos a nova direita em ação, ou a repetição de uma farsa?

O Brasil vivencia um momento singular em sua recente história. Os diversos protestos desencadeados em Junho do ano passado e que persistem até o presente – de maneira não tão intensa porém compassada -, e a crescente crítica ao atual governo desvelam a insatisfação de relevante parcela da sociedade com o formato socioeconômico e político adquirido pelo país nesses últimos anos.

Nesse contexto é que emerge uma nova direita, que embora ainda não bem definida enquanto projeto, aponta para o que considera negativo para a vida do país nas políticas atuais. Karl Marx, ao analisar a luta de classes na França na obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, acrescenta à reflexão tomada de Hegel, que fatos e personagens importantes na história ocorrem duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Partindo de tal perspectiva, cumpre questionar: até que ponto a ainda não claramente definida direita pode repetir a tragédia da primeira? De que direita estamos falando?

A herança da Ditadura Militar brasileira acabou por formatar uma visão prosaica no imaginário popular do país de que a esquerda seria essencialmente comunista, de modo que tudo e todos que ameaçavam a ordem social eram classificados como “esquerda subversiva”. Nessa esteira de esquerda estavam José Serra e Dilma Rousseff, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Governo e oposição no presente. A ironia demonstra per si o equívoco da classificação esquerda-direita do Regime Militar, pois, embora todos fossem opositores, a denominação de comunistas poderia ser considerada, no mínimo, esdrúxula.

Acabada a Ditadura, as posições políticas puderam configurar-se mais claras e as políticas neoliberais que abarcaram o governo de Fernando Henrique Cardoso demonstraram o erro de se denominar como “comunistas” simplesmente aqueles que iam contra a manutenção do regime militar. O neoliberalismo brasileiro, assim como nos demais países latino-americanos, deu provas do estrangulamento socioeconômico através do aumento galopante das desigualdades sociais e as contradições desse processo deram luz a governos que configuram um desenho geopolítico latino-americano em que o intervencionismo estatal ganha espaço como elemento de harmonização socioeconômica, o que, obviamente, não significa que sejam de “esquerda” ou “comunistas”.

A partir daí, a direita parece ter sido identificada com aqueles que buscavam soluções neoliberais e a esquerda, caso do Partido dos Trabalhadores, seria a que defende o Estado interventor. Ser de esquerda significaria apoiar o projeto petista, mas e ser de direita? Significaria apoiar o projeto neoliberal ou a volta do Regime Militar? Os dois apresentam uma contradição intrínseca: o primeiro advoga o estado mínimo, e o segundo o estado “máximo”, capaz de controlar todas as esferas do universo socioeconômico e político.

A direita que desponta no presente parece se aglutinar em um dos polos acima apresentados. De um lado, aqueles que defendem a volta de um estado forte e centralizado, que vê com nostalgia o Regime Militar, garantidor da ordem e do progresso. Possuem a percepção de que “naquele tempo” as coisas eram melhores, devido ao boom do milagre econômico e às repressões que não pareciam escandalizar àqueles que não questionavam o Regime, dando a falsa ideia de paz e harmonia social. Essa direita fez-se conhecida com a tentativa do reprise da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que, ao contrário de 1964 em que reuniu meio milhão de pessoas, aglutinou cerca de 700 pessoas em março deste ano em São Paulo, associando o PT com o comunismo e defendendo a volta do Regime Militar.

A outra direita refuta a Ditadura Militar e defende o Estado mínimo e tem se organizado para criar partidos. São três as legendas em formação: O Partido Federalista, os Libertários (Líber) e o Partido Novo, defensores da redução de impostos, das privatizações e do fim do Estado que busca redistribuir renda. Em suma: são os novos neoliberais, ou os “neo-neoliberais”. Acreditam que o atual quadro político tenha sido tomado pela esquerda2. Parecem se associar com ideários propalados por jornalistas e intelectuais como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino3, entre outros.

O fenômeno nos leva à reflexão acerca da crise da representatividade contemporânea, suas causas e consequências. Em primeiro lugar, o PT subiu ao poder em um contexto de insatisfação popular, dados os efeitos colaterais das políticas neoliberais e a aposta em uma nova governança. Durante os governos Lula (2003-2010), inseriram-se políticas econômicas populares com alto grau de repercussão eleitoral como a Bolsa Família, ao mesmo tempo em que não se afrontou o grande capital, particularmente o financeiro, que alcançou maiores níveis de lucratividade. Políticas, portanto, sociais-democratas. Emergiu o que se caracterizou como a “nova classe C”, marcando a absorção de uma ampla parcela da população ao mercado de consumo.

O Brasil passara pela crise de 2008 isento de recessão, graças sobretudo ao mercado interno. No entanto, tal política atingiu um esgotamento. A inflação, a queda do crescimento e a percepção de que os serviços públicos configuram-se de péssima qualidade, alavancaram forte insatisfação popular que atingiu a popularidade do atual governo e do PT. Em contrapartida ao esforço de tornar o Brasil mais relevante internacionalmente, sediando a Copa do Mundo e as Olimpíadas e alocando gastos públicos exorbitantes, essa onda de descontentamento se cristalizou nas manifestações de Junho mencionadas no início do artigo. De lá para cá, constata-se uma continuidade dessa insatisfação através de um movimento inédito de articulação nas redes sociais e na internet em que convergem expressões individuais e coletivas que possuem em comum a desconfiança nas representações políticas apresentadas pelos atuais partidos. Um movimento que surge da base para o topo e almeja mudanças, no entanto como escolher um caminho?

É nesse sentido que caminha a nova direita: busca-se em experiências passadas parâmetros para prospectivas futuras. Seja na herança militar ou no resgate do neoliberalismo. Ironias de uma sociedade que parece não conhecer seu passado de maneira coerente, mas que compra as ideologias vendidas como oásis das resoluções das mazelas dos períodos anteriores de maneira acrítica, confundindo as tragédias passadas com heroísmo e buscando ressuscitar a história com uma pitada de nostalgia.  A Ignorância parece ser a pior de todas as mazelas de uma sociedade, pois, na tentativa de buscar novos rumos busca-se em uma herança nefasta referências para o “novo”. Bom seria se as instituições de ensino se aprofundassem no aprendizado histórico e conceitual de noções que invadem nosso cotidiano em forma de rótulos como “capitalismo”, “comunismo”, “socialdemocracia”, “esquerda”, “direita”, “autoritarismo” e afins. Talvez não veríamos cartazes na avenida Paulista denominando o governo petista de comunista, governo que, como já citado, viabilizou os maiores ganhos do capital financeiro na história do país.

A “esquerda fora de lugar”, ou seja, o equívoco em alocar o PT como um governo de esquerda sem o ser, acabou por gerar um clima generalizado de combate à “esquerda”. Somada à falta de partidos ou propostas de esquerda que fossem capazes de responder aos problemas do presente, parece ter se criado um vácuo ideológico, ocupado agora pela obscura, mas crescente presença da nova direita. Nova direita ou a repetição enquanto farsa? É provável que Marx ficasse com a segunda alternativa.

 Sara Toledo

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