O campo brasileiro vive uma contradição: o país é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, segundo a OMC (Organização Mundial do Comércio), mas três em cada quatro domicílios localizados em áreas rurais (75,2%) estavam em situação de insegurança alimentar entre agosto e dezembro de 2020, conforme estudo da Universidade Livre de Berlim publicado em abril.
A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome. Segundo o levantamento, o percentual de insegurança alimentar no campo supera o das cidades (55,7%) e do Brasil como um todo (59,4%).
Os moradores de áreas rurais também estão mais sujeitos à insegurança alimentar grave, quando a escassez de alimentos chega às crianças da família e a fome passa a ser uma experiência do cotidiano.
Em áreas rurais, 28% dos domicílios estavam em situação de insegurança alimentar leve (marcada pela incerteza no acesso aos alimentos e qualidade inadequada da alimentação) ao fim de 2020; 19,9% passavam por insegurança moderada (quando há redução na quantidade de alimentos disponíveis para os adultos) e 27,3% enfrentavam insegurança alimentar grave.
Já em áreas urbanas, a insegurança alimentar leve afetava 31,6% dos lares, a moderada 11% e um total de 13,1% conviviam com a insegurança alimentar grave.
Segundo especialistas, o elevado índice de insegurança alimentar em áreas rurais no Brasil se deve a uma combinação de fatores.
Entre eles estão o maior percentual de pobreza no campo, a elevada concentração no acesso à terra, a limitação dos recursos hídricos em muitas regiões do país e o menor acesso das comunidades rurais afastadas aos equipamentos públicos de segurança alimentar e às redes privadas de solidariedade e doações.
Essa situação tem sido agravada, desde 2016, por um desmonte das políticas públicas de segurança alimentar, dizem os estudiosos. E, na pandemia, somou-se a esse quadro um menor acesso dos pequenos produtores rurais aos mercados, que prejudicou sua condição de renda.
Em 2021, uma seca sem precedentes tem tornado o cenário ainda mais dramático.
“O sistema alimentar dominante do país referenda e produz desigualdade”, afirma Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).
“A agropecuária exportadora concentra propriedade, tem impactos sociais e ambientais onde atua e promove êxodo rural. Essa é uma característica da formação histórica da sociedade brasileira, não é de agora”, observa o pesquisador.
“Esse modelo não tem a perspectiva de alimentar pessoas, é um grande negócio global. O mundo nunca produziu tantos alimentos como agora e a fome continua. Portanto, não é essa a saída”, avalia o especialista em segurança alimentar.
Renata Motta, pesquisadora da Universidade Livre de Berlim e uma das autoras do estudo Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil tem avaliação similar.
“A fome não é resultado da falta de produção de alimentos, mas da falta de acesso a eles”, diz Motta.
“Josué de Castro, o pesquisador da fome que construiu uma agenda importante sobre o tema na ONU [Organização das Nações Unidas], sempre falava que a fome é uma questão política. Ela não é uma questão de mercado e não vai ser resolvida pelas leis de mercado, pois o mercado vende para quem pode comprar.”
Ela cita o exemplo do arroz brasileiro, que acumula uma alta de preços de 57% em 12 meses até abril, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em meio ao aumento das exportações do produto para a China.
“Compra quem pode. No Brasil e no mundo, temos uma produção de alimentos suficiente para alimentar a população inteira e temos a fome, porque ela é uma questão de desigualdade.”
A BBC News Brasil procurou as principais entidades representantes do agronegócio no país para falar sobre a insegurança alimentar em áreas rurais.
A Abag (Associação Brasileira do Agronegócio) e o IPA (Instituto Pensar Agropecuária) não quiseram dar entrevistas, mas destacaram que o setor lança em 1º de junho, junto ao Ministério da Agricultura, o programa Agro Fraterno, que vai arrecadar e doar alimentos para famílias necessitadas e afetadas pela pandemia da covid-19.
Já a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) informou através de sua assessoria de imprensa que ainda não havia recebido retorno de sua área técnica até o fechamento desta reportagem.
Seca e pandemia: uma combinação sem precedentes
Na semana passada, o SNM (Sistema Nacional de Meteorologia) emitiu o primeiro alerta de emergência hídrica para o período de junho a setembro, na região da Bacia do Paraná, que abrange os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná, informou o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento na quinta-feira (27/05).
A seca tem agravado a situação de insegurança alimentar em comunidades rurais cuja renda já vinha sendo afetada pela pandemia desde o ano passado.
“Nossa comunidade é uma comunidade quilombola, uma comunidade carente do município de Iaciara, que é uma cidade muito pobre”, conta Antonino Bispo da Silva, de 57 anos e uma das lideranças da comunidade quilombola do Levantado, em Iaciara, no nordeste de Goiás, a cerca de 320 km de Brasília e pouco mais de 200 km por estrada de Alto Paraíso de Goiás.
Os quilombolas do Levantado são cerca de 40 famílias, das quais entre 200 e 300 pessoas vivem atualmente na comunidade, que há 14 anos aguarda a demarcação pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
“A gente passa muita dificuldade, porque a sobrevivência da gente é o plantio da gente mesmo e já há algum tempo que aqui há falta de chuva e as nossas lavouras não rendem”, diz o líder quilombola.
Além da falta de chuvas, os quilombolas enfrentam uma disputa por água com os fazendeiros vizinhos que represam o fluxo do riacho local para a produção agrícola rio acima da comunidade. Também estão em conflito com uma mineradora (CalBrax) que pretende explorar calcário, tendo a base de exploração a 1,5 km das casas da comunidade.
Segundo Bispo da Silva, quando não havia seca, a comunidade plantava cana-de-açúcar, banana, arroz, feijão, mandioca, milho. “A gente se alimentava e ainda sobrava um pouquinho para vender”, lembra o agricultor.
Agora, as famílias têm se sustentado com a aposentadoria rural dos idosos e uma ou outra diária em fazendas que os mais jovens de vez em quando conseguem, além de doações de cestas básicas feitas pela CPT (Comissão Pastoral da Terra).
“Se a gente já vinha sofrendo, agora está muito mais. E, com a pandemia, quando pega serviço, não pode botar muita gente para trabalhar, para não ter aglomeração”, conta. “Se não tivéssemos as pessoas que às vezes nos dão um auxílio, seria pecaminosa a nossa situação.”
Na vizinha Minas Gerais, a falta de chuva também tem agravado a insegurança alimentar na região de cerrado do norte do Estado.
“Tem 18 anos que eu trabalho aqui, desde que me formei, e eu nunca tinha recebido tanto pedido de cesta básica de comunidades rurais como está acontecendo agora”, relata Samuel Caetano, assessor técnico do CAA (Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas).
O CAA é uma organização formada há 35 anos por agricultores familiares e comunidades tradicionais, que atua no norte de Minas desde que a monocultura de eucalipto chegou ao cerrado, ocupando territórios tradicionais desses povos.
“Estamos numa região semiárida, de chuvas irregulares. Não é que não chove, mas o que tem que chover ao longo do período de chuva, às vezes acontece em 15 dias e isso tem um impacto muito grande, a agricultura fica muito comprometida”, diz Caetano.
“No meio disso, teve o processo da pandemia, que se soma à diminuição de programas como o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], o Pnae [Programa Nacional de Alimentação Escolar] e as políticas de acesso a crédito”, enumera o assessor técnico.
“Tudo isso deixa a agricultura familiar muito fragilizada, porque o agricultor planta, às vezes perde o que plantou e, com o processo da pandemia, muitas vezes não consegue comercializar, porque os mercados estão comprometidos, as feiras ficaram fechadas, impedindo de vender a produção para comprar os outros itens de que eles têm necessidade.”
Segundo Caetano, a segunda onda da pandemia foi muito mais devastadora do que a primeira, porque pegou as comunidades em estado muito mais frágil.
“Na primeira onda, tinha o auxílio emergencial de R$ 600 e houve um bom período de chuva, foi um ano de fartura – se produziu muita abóbora, feijão, milho, então os celeiros estavam abastecidos, mesmo que não se pudesse comercializar”, relata o técnico.
“Isso foi esgotado, esse ano muita gente não conseguiu pegar o auxílio e a seca chegou forte, não vai ter mais o plantio. Então, o que se anuncia é um processo de fome, que já está acontecendo na prática e que é agravado pelo quanto o preço das coisas está crescendo.”
A inflação medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumula alta de 6,76% em 12 meses até abril. Os alimentos e bebidas, no entanto, subiram quase o dobro disso, com um avanço de 12,31% no mesmo período.
Itens básicos como óleo de soja (82%), arroz (57%), feijão preto (42%), carnes (35%) e o botijão de gás (21%) usado para cozinhar acumulam aumentos de preços ainda mais expressivos.
Como mudar esse quadro
Questionado sobre o que é preciso ser feito para mudar o atual quadro de insegurança alimentar no campo, Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan não titubeia.
“A primeira coisa que precisa ser feita é tirar o Bolsonaro”, responde o pesquisador, sem meias palavras. “Isso não é apenas uma manifestação de desejo. Não há a menor possibilidade de os programas de segurança alimentar serem retomados, da forma como foram concebidos, sob esse governo.”
Maluf afirma que o desmonte dessas políticas teve início em 2016, após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e com a aprovação da regra do teto de gastos, que limitou as despesas do governo federal, visando controlar a trajetória da dívida pública.
Entre os programas que foram esvaziados, o pesquisador cita o de construção de cisternas, o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar, além do fim da política de valorização do salário mínimo que, junto com o avanço do emprego, foram fundamentais para que o Brasil deixasse do mapa da fome da ONU em 2014.
Ele cita ainda a extinção do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), o encerramento da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional e o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que concentrava as ações de apoio à agricultura familiar.
“Houve um desmonte da estrutura institucional que havia sido montada nessa área”, avalia.
Para Renata Motta, da Universidade Livre de Berlim, além da retomada desse sistema, é necessário, em caráter imediato, tornar o auxílio emergencial uma política perene enquanto durar a pandemia, para que não seja necessário renegociá-lo a cada três meses.
Além disso, segundo a socióloga, é preciso retomar um valor de auxílio que permita às pessoas ficarem em casa, para que a pandemia possa de fato ser controlada.
Débora Nunes, membro da direção nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), defende ainda que o fim da insegurança alimentar no campo depende do avanço da reforma agrária no Brasil.
“Há dois projetos de agricultura no nosso país: o do agronegócio que produz commodities para exportação, e o outro modelo é o da agricultura camponesa e familiar”, diz Nunes.
“Quanto mais gente no campo, quanto mais terra democratizada, maior a possibilidade de produção de alimentos. Por isso dizemos que a reforma agrária possibilita resolver problemas fundiários do nosso país, com a democratização da terra, mas também tem a possibilidade de enfrentar outros problemas estruturais que a sociedade vivencia, como a fome.”