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Vende-se uma bicicleta que não viu ônibus pela frente

Desceu do ônibus na rua principal do bairro. Lugar cheio de altos e baixos. Para chegar no endereço procurado precisou subir uma imensa ladeira. Ainda ofegante pela subida da rua, releu o anúncio para confirmar se estava no local certo: “Vende-se uma bicicleta. De único dono, com pouco uso e em bom estado de conservação. Estudo todas as propostas”. Ele apertou a campainha e foi atendido por um menino de uns 9 anos, de olhar triste e distante.

— É aqui que tem uma bicicleta à venda?

— É!

Diante do menino de olhar triste e monossilábico, o possível comprador, tentando quebrar o gelo, emendou em tom de brincadeira:

— Aposto que você se cansou de subir ladeiras empurrando a sua bicicleta e agora a está vendendo.

Não obteve resposta. Parece que a brincadeira não surtiu o efeito desejado. O clima só foi quebrado pela chegada do pai. Os três entraram na pequena sala da casa e o menino foi para um canto do cômodo, e lá ficou acocorado, cabisbaixo e calado.

— A bicicleta é boa. Dá para o uso. Comprei as duas novas. Essa e a do meu outro filho. Foi presente de natal para eles.

— O bairro aqui é bem tranquilo. Se não fosse as ladeiras seria perfeito para andar de bicicleta.

Disse o comprador, iniciando a negociação.

— Ladeira não atrapalha não. Eu cresci nesse bairro. Quando criança, a brincadeira mais divertida que fazíamos, era descer as ladeiras de bicicleta. A gente se soltava ladeira abaixo, indo totalmente sem freio e deixando a magrela pegar velocidade. No meio da descida de tanta trepidação, tinha que segurar firme o guidão para não cair. Eu era craque em descer ladeira sem usar freio, tinha vezes que eu até pedalava para ir mais rápido. Só dava problema quando algum molenga ia mais devagar e embolava os que vinham atrás. Aí era tombo na certa. A gente não tinha medo de nada. É verdade que naquele tempo não havia tanto movimento de carros. Nós cruzávamos a rua principal a toda velocidade e sem olhar para os lados. Mas, antigamente não passava ônibus na rua principal.

Depois dessa última frase, o pai fez uma pausa mais longa antes de concluir a história.

— Essa era a parte boa das ladeiras aqui do bairro.

— E a parte ruim devia ser subir de volta para casa, a pé e empurrando a bicicleta, falou o comprador, rindo.

— É.

A resposta curta e fechada, fez com que, pela primeira vez, o comprador notasse alguma semelhança entre pai e filho. Talvez a única. Ambos possuíam o mesmo olhar triste e distante.

— O preço é razoável. Mas, os pneus estão bem gastos, disse o comprador, já pensando em pedir um abatimento no valor da bicicleta.

— Sim. Foi de tanto frear. O menino não se solta na ladeira. Vai muito devagar. Parece até que tem medo, afirmou o pai falou sem olhar para o menino que continuava acocorado no canto da sala, cabisbaixo e parecendo alheio à negociação da bicicleta.

— Você precisava ver a outra bicicleta. Era a melhor das duas. Pneus novos, freios quase sem uso. Muito boa para descer ladeira. A bicicleta era tão estável, que mesmo em alta velocidade, o meu menino soltava as mãos do guidão e ela seguia em linha reta.

O pai dessa vez falava com algum entusiasmo e até surgiu um pequeno brilho no olhar, que agora estava ainda mais distante.

— E por que você está vendendo a bicicleta? Ela tem algum defeito mais grave, além dos pneus gastos?

Nesse momento, pai e filho trocaram um olhar que os traiu. Ficou evidente serem cúmplices de um mesmo segredo. O silêncio se prolongou por mais tempo que a paciência do comprador permitia.

— Acho que você está me escondendo o jogo. A bicicleta boa mesmo, deve ser a outra que você não me mostrou. Você a elogiou tanto que agora fiquei interessado em comprá-la. Posso vê-la?

— Infelizmente ela não está à venda. Eu tive perda total. Só me sobrou essa mesma. Não vale tanto quanto a outra. Mas, é a única que tenho.

— Como assim? O que aconteceu com a outra? Foi roubada?

Dessa vez o menino adiantou-se ao pai e respondeu ao comprador.

— Meu irmão atropelou um ônibus com ela.

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