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Ceará

Veridiana, Horácio, Cassiana e a cascavel salvadora de todas as dores

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Era notória, naqueles cantos, a paciência dos urubus, por mais ansiosos que estivessem, em esperar por mais uma criatura faminta ou, então, acometida de alguma moléstia finalmente sucumbisse. Ajoelhada e sem vontade de rezar, Veridiana olhou aquelas aves e teve a certeza de que os sonhos de infância não passaram de devaneios de alguém que não conseguia enxergar a própria sina.

Com as palmas das mãos sobre o solo rachado da caatinga do Ceará, a mulher soltou um arre e conseguiu erguer o corpo. Nunca fora boa com números, mas sabia que havia um povoado a duas léguas. Que fossem sete ou oito, ela estava decidida a não virar repasto de urubu. Não naquele dia. Que fossem procurar por outra carcaça com menos vontade de prosseguir nessa sobrevida ingrata.

Aos 38 anos, passara por momentos de penúria e raros confortos. Desde sempre fora explorada, seja pelo pai, seja pelos irmãos, seja pelo homem que se fez seu marido. Seca nas carnes e por dentro, nunca engravidou, apesar das indesejadas investidas do macho que a cobria sem lhe dar sossego.

Horácio não se conformava por escolha tão despropositada. Para que servia mulher estragada, se não era capaz de lhe dar os filhos que tanto queria? Pois tratou de arrumar uma mais nova e de procedência garantida.

Cassiana, a vizinha, era viúva e sustentava dois meninos graúdos. O homem foi ter um dedo de prosa e a coisa ficou acertada. Divorciou de Veridiana e desposou a outra. Não tardou, constatou que a escolha havia sido acertada, pois a nova esposa logo apresentou os primeiros enjoos.

Quanto à Veridiana, foi colocada de lado para os afazeres domésticos. Perdera o posto de esposa, mas Horácio necessitava de alguém para ajudar a nova mulher na lida com a casa. Vez ou outra, dependendo da falta de disposição da Cassiana, deitava-se com a ex-consorte. Rosto virado para o lado ou fixo no teto, Veridiana aguardava o arfar do sujeito se esvair num urro. Coisa de minutos, que pareciam uma eternidade.

Enquanto caminhava, Veridiana se recordava da vida miserável que se acostumou a levar. Não tinha raiva de Cassiana, muito menos das crianças e do bebê a caminho. Eram todas vítimas da perversidade do inferno onde nasceram. E nada de indulgências para os desprovidos de sorte. Que cumprissem as próprias agruras.

Horácio, todavia, não era visto com qualquer benevolência. Tanto é que Veridiana decidiu pôr um ponto final não apenas nas investidas do gajo, como também fazê-lo pagar por todos os pecados. Ela pensou numa maneira que não levantasse suspeitas.

Após quase dois meses, eis que Veridiana percebeu que o melhor era envenenar o traste. Que ele gostava de doces, todos sabiam. Que morresse empanturrado de quebra-queixo!

Tentou antúrio, mas não conseguiu provocar nada além do que diarreia e vômito no homem. Abusou de óleo de mamona, mas tratou de jogar fora todo o tacho porque os meninos e a buchuda reclamaram seu quinhão.

— Estragou.

— E desde quando doce estraga?

— Pois esse estragou. Faço outro amanhã.

A desculpa parece que não convenceu Cassiana, mas nada que provocasse intriga entre as duas. Quanto às crianças, foram ludibriadas por generosos nacos de rapadura.

Os dias prosseguiram, até que, por algo tão inesperado como picada de cobra, eis que Horácio, ao acordar depois de passar mais uma noite sobre Veridiana, foi calçar a botina. Pelo barulho do chocalho, parece que foi cascavel, que buscara refúgio no caldado do homem.

Veridiana nunca sentiu tamanho regozijo ao encarar o desespero de Horácio, que gritava. Não tardou, Cassiana surgiu e ainda pode ver a serpente se esgueirando para debaixo da cama. As duas mulheres, cúmplices nos desejos, viram o homem se esvair em pouco mais de duas horas.

— Vá buscar ajuda!

— Vou.

Cansada pela longa caminhada, Veridiana, finalmente, chegou ao povoado, onde sabia não existir médico. Tratou de comunicar o ocorrido ao padre, que acompanhou a mulher até o sítio da família. Nem deu tempo de fazer a extrema unção. Horácio, tipo comum da região, tinha um filete de sangue ressequido no canto dos lábios.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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