Defunto descalço
Vida de policial plantonista é uma roleta russa
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emNoite, quase madrugada, o telefone toca na delegacia. Vários disparos de arma de fogo numa das áreas mais miseráveis da região. O repouso dos policiais havia sido prejudicado. Que seja! Vida de plantonista é roleta russa.
Diante do minguado contingente, Laura e Vicente rumaram para o local, enquanto Araújo permaneceu a postos. Melhor seria que fossem os três, mas a delegacia precisava continuar aberta. Os dois primeiros fingiram coragem, enquanto o terceiro disse: “Qualquer coisa, me acionem!”
A dupla chegou ao local, onde encontraram um homem caído ao lado de um veículo. As costas perfuradas como peneira. A porta do motorista aberta indicava que a vítima estaria ao volante e, por algo ainda não explicado, tentou fugir, mas sem sucesso, como mostrava seu corpo inerte e a enorme poça de sangue ao lado.
Apesar do avançar das horas, alguns curiosos salpicavam o local. A inspetora Laura conversou com algumas pessoas, mas ninguém havia presenciado o crime. Também nunca haviam visto aquele automóvel azul cintilante, tão incomum de ser visto por ali. Não pela cor, mas porque se tratava de um Porsche.
Os inspetores preservaram o local do crime, pois uma equipe do Instituto de Criminalística (IC) estava a caminho e, logo atrás, o pessoal que recolheria o corpo para o Instituto Médico Legal (IML). Enquanto aguardavam, Laura e Vicente observaram que o caso não parecia ter sido uma tentativa frustrada de roubo, pois a carteira do morto repousava ao lado do par de chinelo. Mas não chinelos baratos, pois aquele modelo, apesar de ser de uma marca popular, chegava a custar algumas centenas de reais.
Menos de meia hora após, as viaturas da criminalística e do IML estacionaram ao lado da viatura da delegacia. Depois dos cumprimentos de praxe, os peritos começaram a trabalhar. Laura e Vicente se afastaram alguns metros a fim de não interferirem. Os dois confabulavam teorias sobre o ocorrido, até que perceberam que o chefe da equipe do IC avisou que o corpo estava liberado para o pessoal do IML.
Luvas postas, três homens se aproximaram. Enquanto um abria um enorme saco preto, os outros dois ergueram o defunto. Não tardou, o invólucro foi lacrado. Vicente, que entrara há pouco na polícia, se deu conta, justamente naquele momento, que era dali que vinha a expressão “Foi pro saco!”
O rabecão, não tardou, também foi embora. Os poucos curiosos, que ainda permaneciam no local, foram se dispersando aos poucos. Quase todos, menos um maltrapilho, que mantinha os olhos fixos para o local onde, há pouco, o morto repousava. Isso não passou despercebido por Laura.
– O que foi?
– Nada, senhora.
– Se manda daqui!
Apesar da voz enérgica da policial, o homem não tirava os olhos da poça de sangue.
– O que você quer? Não ouviu a policial mandar você se mandar?
– Ouvi, sim, senhor.
– Então, vaza!
– Posso pedir uma coisa pro senhor?
– Diga.
– Posso pegar esse chinelo aí?
Foi aí que Laura e Vicente entenderam a situação. Eles se entreolharam e, em seguida, a policial apenas acenou para o mendigo, que tratou logo de correr e pegar o objeto do seu desejo. Calçou-os e saiu correndo, saltitante como alguém que havia tirado o prêmio maior da loteria.