Ponta do ranking
Violência contra mulher cresce em todo o país
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emLogo que o decreto que facilita a posse de armas de fogo no País foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, em 15 de janeiro, coletivos, instituições, pesquisadoras da área de gênero, assim como inúmeras mulheres que se engajam autonomamente na luta contra a violência alertaram para as consequências dessa medida.
Mais armas em casa – espaço já perigoso para a vida das mulheres, pois mais da metade dos feminicídios acontece no “lar”- impactará em mais mortes dentro delas. A munição para o aumento dos casos de feminicídios foi dada na assinatura do texto que modifica a previsão relativa ao tema e expressa no Estatuto do Desarmamento, de 2003, no que se refere aos requisitos para a posse de armas em casa ou no local de trabalho.
Com a publicação do decreto, entre os requisitos para ter acesso à posse está a comprovação de que estas armas são “necessárias”. Para isso, basta morar em estado que tenha mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes ao ano. Atualmente, todos os estados do Brasil, mais o Distrito Federal, atendem a esse requisito.
“A gente entende que vai refletir na questão da violência doméstica e familiar, sendo mais um instrumento, mais um meio, para ameaças, assim como lesões corporais e casos de feminicídios”, considera a defensora Paula Sant’Anna Machado de Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública de São Paulo.
“Estudos mostram que quando a arma entra em casa, a violência aumenta. Isso em todos os contextos, não só na violência doméstica”, destaca ela.
A preocupação com o aumento nos lares do instrumento que foi utilizado em mais de 50% dos homicídios de mulheres no Brasil (Datasus), é bastante justificada pelos dados. Em janeiro, a organização internacional Human Rights Watch divulgou relatório apontando que o Brasil enfrenta uma epidemia de violência doméstica. Em 2017, das 4.539 mulheres assassinadas pelo menos 1.133 foram vítimas de feminicídios. Os números podem ser ainda maiores ao considerar que muitos casos não são enquadrados corretamente como violência de gênero.
A organização ainda detectou que a taxa de homicídios de mulheres no Brasil é maior do que em qualquer outro país que compõe Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), na qual figuram 36 nações. Em 2015, foram registradas 4,4 mortes para cada 100 mil brasileiras. Roraima lidera a lista com o dobro de casos: 11,4 homicídios.
“Apesar de Roraima apresentar a maior taxa de homicídio de mulheres no país, seus problemas refletem falhas na proteção das mulheres contra a violência em todo o país. A Lei Maria da Penha foi um grande avanço, mas após uma década, sua implementação permanece lamentavelmente insuficiente em grande parte do país”, argumentou Maria Laura, diretora do Brasil na Human Rights Watch.
Além disso, segundo dados do Atlas da Violência 2018, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a situação se agrava quando o recorte de raça é incluído na análise.
Enquanto entre as mulheres negras a taxa de homicídio ficou em 5,3 por grupo de 100 mil em 2016, entre as não negras, englobando brancas, amarelas e indígenas, a taxa foi de 3,1, uma diferença de 71%.
dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que houve um aumento de 22% nos registros de casos de feminicídio no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus.
Os números correspondem aos meses de março e abril e foram comparados com o mesmo período do ano passado. O número passou de 117, em 2019, para 143 neste ano.
Outro levantamento feito pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) apontou aumento da violência em relação aos dados de 2018 apurados no Dossiê Mulher, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública. Enquanto em 2017 foram registrados, em média, cinco crimes de feminicídio por mês no estado, em 2019, foram quatro casos em apenas cinco dias.
O tema da violência contra a mulher é complexo e envolve questões culturais que perpassam não só os indivíduos, mas as instituições formadas por eles. A Organização Mundial da Saúde coloca o Brasil no 5º lugar dos países que matam mulheres no mundo no contexto doméstico e familiar. Para a defensora de São Paulo, esses dados demonstram que as mulheres estão morrendo dentro de casa, por familiares, pelos próprios companheiros.
“Isso significa que as mulheres não tem um respaldo do próprio Estado. A gente ainda não enfrenta esse problema com a gravidade que tem e a rapidez que é necessária. Apesar desse índice enorme, temos uma cifra que não é noticiada. Muitas vezes quando a mulher chega no Estado, na saúde, educação, justiça, levando a questão da violência, é revitimizada, ela é culpabilizada”, critica Paula.
Este cenário de descrédito na palavra das mulheres que procuram as instituições após situações de violência é atribuído à não discussão dos temas de gênero em todas as esferas, incluindo as escolas. “Elas são silenciadas e quando elas levam a questão da violência o Estado não tem uma resposta. Aqui em São Paulo nós não temos auxílio aluguel. Se eu não tenho uma solução para onde ela vai morar, eu estou empurrando ela para a violência. Se eu não tenho creche para as crianças, eu também estou empurrando ela para a violência”.
Segundo a defensora, as mulheres estão lutando para que essa situação se modifique, mas os homens ainda são maioria nos cargos de poder decisório e este cenário impacta nos avanços necessários. Enquanto a representatividade não for maior, Paula é enfática ao considerar que esses homens têm a obrigação de pautar essas políticas públicas, pois “estamos galgando uma medalha de ouro no ranking da violência contra a mulher”, ressalta ela.
A facilitação da posse de armas e o aumento da presença delas nas casas deve impactar principalmente no agravamento da situação de mulheres que já sofrem com a violência doméstica, segundo a defensora pública de Florianópolis, Anne Teive Auras. Ela lembra que a maioria dos casos de feminicídio acontece no âmbito da violência que ocorre dentro das casas, sendo que esses agressores, em mais de 80% dos casos, são pessoas próximas da vítima, da família.
“A presença de uma arma em situações em que já existe violência, seja ela psicológica, sexual e física, pode muito mais rápido e de forma mais fácil culminar em um assassinato. Muitas mulheres sobrevivem a uma tentativa de assassinato porque o instrumento que o agressor usou não era tão letal”, relata. No Estado de Santa Catarina, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, foram registrados 42 feminicídios em 2018, uma média de três por mês.
A exigência de comprovação de não antecedentes criminais não traz maior segurança para as mulheres, pois muitos homens que praticam violência doméstica não apresentam condenação criminal. Anne considera que a maioria dos agressores não possuam antecedentes exatamente pela forma como o ciclo deste tipo de violência acontece, com muitos anos de duração e grande dificuldade para ser rompido. Assim, o assassinato da vítima pode acontecer antes mesmo dela fazer uma denúncia.
De acordo com a defensora, considerar suficiente a inexistência de condenação é desconhecer o contexto de violência contra as mulheres, assim como também demonstra desconhecimento o argumento de que as próprias mulheres podem se proteger ao ter acesso à armas. “Acreditar nisso é desconhecer a lógica porque boa parte das mulheres está em situação de vulnerabilidade, muitas vezes não se compreende como vítima, mas como culpada. Assim como não enxerga o agressor como agressor.
Além disso, temos a questão da dependência financeira e o custo para obter a arma e a autorização para a posse. O risco é muito maior do que a possibilidade de proteção”, ressalta. Parece improvável ainda, de acordo com a defensora, que as mulheres se submetam a todo procedimento para obter a autorização para posse de arma visando se defender de seu marido ou de seu filho.
O aumento do prazo de cinco para dez anos para a renovação da posse, assim como a possibilidade de possuir até quatro armas em casa são fatores que também devem agravar a violência. “O decreto têm uma previsão de que casas com crianças ou pessoas com deficiência precisaria contar com um cofre para guardar a arma, mas não existe nenhuma forma de fiscalizar isso. A pessoa informa que tem, e não têm. Aparentemente, seria algo muito perigoso”, avalia Anne.
A relação entre a posse de armas de fogo e o agravamento da violência contra as mulheres é tão íntima, que a própria Lei Maria da Penha, de 2006, prevê como medida protetiva a suspensão da posse ou porte de armas do agressor. A previsão pouco conhecida e utilizada até então, ganhou publicidade pela Defensoria de São Paulo ao criar um modelo de solicitação da medida depois da assinatura do decreto.
“Entre as várias protetivas que a lei trouxe, de não aproximação, de não contato, ela trouxe no artigo 22 a possibilidade de se pedir também como medida protetiva a suspensão da posse ou do porte de armas. Nos atendimentos que a gente já fez, a gente tinha esse pedido muito mais direcionado para a questão dos agressores que são da segurança pública, como policiais e guardas civis, não chegava muito na defensoria a questão da posse de pessoas da sociedade civil como um todo”, explica a defensora Paula Sant’Anna Machado de Souza.
Além de informar a população e as diversas instâncias que atuam no enfrentamento à violência sobre a existência do artigo na legislação, a defensoria também tem atuado para lembrar que a solicitação pode ser feita mesmo sem o boletim de ocorrência. O entendimento é que o risco só pode ser avaliado pela própria mulher. Assim, a violência ou o risco dela acontecer não precisa ser comprovado e o pedido pode ser feito em qualquer delegacia, como também no Ministério Público e na Defensoria Pública, caso essa mulher não possa pagar uma advogada ou advogado.
“É preciso dissociar a necessidade de ter um boletim de ocorrência para pedir uma medida protetiva. Ela pode não querer uma resposta criminal, mas ela pode querer uma resposta da medida protetiva. A gente compreende que são ações independentes”.
Para a defensora, só o fato de ter uma arma em casa já pode ser uma ameaça, mas dificilmente isso será traduzido nos termos do Código Penal. “Mas é claro que dentro de um contexto que a mulher avalia que não tinha a arma e agora tem e isso significa um risco maior, ela pode querer essa suspensão. E essa suspensão pode ser conjugada com o afastamento do lar, com a não aproximação e não contato”.
Assim como as outras protetivas, a suspensão do porte não têm validade estipulada, devendo ser efetiva enquanto existir o risco, e só quem pode avaliar se existe risco é quem está neste contexto de violência.