As cenas do assassinato por asfixia de Genivaldo de Jesus Santos por policiais rodoviários federais em Umbaúba, Sergipe, nos esbofeteiam enquanto ainda vivemos o choque da chacina na Vila Cruzeiro, zona Norte do Rio de Janeiro, em que 26 pessoas foram mortas em uma operação policial na quarta-feira passada. MPF e MPRJ abriram investigações para apurar mais uma chacina sob o governo Cláudio Castro, aliado de Bolsonaro: foram 39, com 178 mortes em apenas um ano de gestão. Isso, apesar de uma ordem do STF que restringiu operações policiais em comunidades no Rio durante a pandemia.
Já o vídeo que registra o crime que matou Genivaldo ontem em Sergipe desnuda a crueldade estúpida de agentes da Polícia Rodoviária Federal desde o momento em que o homem de 38 anos obedece à ordem dos policiais para que pare a moto e desça. Genivaldo mantém as mãos na cabeça quando é revistado e só perde a paciência quando xingado pelos policiais. Tenta então se desvencilhar. É agarrado e imobilizado no chão pela perna de um agente federal em seu pescoço. Com pés e mãos amarrados é jogado no porta-malas da viatura. Os agentes batem a porta do bagageiro contra suas pernas, que ficam de fora do porta-malas, enquanto o asfixiam com gás até a morte.
A nota da Polícia Rodoviária sobre o caso não deixa dúvidas de que os agentes criminosos contam com a cumplicidade da corporação. Mente descaradamente ao dizer que “foram usadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo” para conter Genivaldo e ao afirmar que “durante o deslocamento, o abordado veio a passar mal e foi socorrido de imediato”. Ouvimos os gritos de Genivaldo ao ser sufocado na viatura.
O presidente Jair Bolsonaro, que já havia comemorado a chacina da Vila Cruzeiro, parabenizando no Twitter o Bope, a PM, a PF e, vejam só, a Polícia Rodoviária Federal, que também participou da operação no Rio, desta vez só falou sobre o caso quando perguntado pela imprensa. “Vou me inteirar com a PRF”, disse, como se houvesse dúvida do que aconteceu.
O presidente tem um carinho especial pela PRF, subordinada ao Ministério da Justiça e dirigida por um amigo de seu filho Flávio, o policial Silvinei Vasques. Vasques responde a oito processos disciplinares desconhecidos do público porque foram colocados sob sigilo por 100 anos pela corporação. Só se sabe o teor de um deles, em que foi condenado pela Justiça Federal de Santa Catarina por ter agredido um frentista com socos depois de o funcionário do posto se recusar a limpar o interior de uma viatura da PRF. A condenação não impediu que ele fosse indicado para o comando da corporação e ainda agraciado com a medalha do mérito indigenista pelo presidente na cerimônia farsesca de março passado.
Além da compra de armas e da promessa de reestruturar a carreira para equipará-la à Polícia Federal, o governo Bolsonaro concedeu poderes especiais à Polícia Rodoviária. Um decreto do MJ de janeiro de 2021 retirou a condição de que “os crimes objetos de apuração tenham sido praticados em rodovias federais, estradas federais ou em áreas de interesse da União” para que a PRF possa participar de operações policiais como a da Vila Cruzeiro. Três meses antes, aliás, a PRF já tinha atuado no mesmo local, em conjunto com o Bope, daquela vez matando 8 pessoas.
O procurador Eduardo Benones, do núcleo de controle externo da atividade policial no Rio de Janeiro, discorda de que a PRF possa atuar para além de suas atribuições. Segundo ele, a participação de policiais rodoviários pode ser considerada um desvio de função constitucional claramente estabelecida no artigo 144, ou seja, “o patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Quer explicações.
Vamos ver se consegue algo mais consistente do que a nota da PRF, que mais uma vez surpreende. Segundo a corporação, sua participação na operação da Vila Cruzeiro se justifica por crimes que teriam sido cometidos recentemente pelo Comando Vermelho contra agentes de segurança pública no Pará e que estariam escondidos no local. Não explica por que seria sua atribuição perseguir supostas lideranças criminosas de outro estado em operação policial oficialmente destinada a combater o tráfico de drogas no Rio.
Nove dias antes do assassinato de Genivaldo, em 17 de maio, o presidente esteve em Sergipe, na cidade de Propriá, a cerca de duas horas de Umbaúba. A PRF fazia a segurança do presidente e foi por ele saudada em seu discurso. Ontem, ao comentar o assassinato sem motivo de Genivaldo, o presidente também tentou justificar de antemão a violência da PRF em Sergipe, lembrando o assassinato de dois policiais rodoviários há duas semanas no Ceará por um suposto morador de rua.
Ao que tudo indica, só é possível entender o crime contra Genivaldo e a chacina no Rio juntando as palavras “vingança” e “grupos de extermínio” à atuação das forças de segurança, cada vez mais corrompidas pelo governo Bolsonaro, contra os pretos e pobres do Brasil.