Honório, a máquina e o defunto
Eduardo Martínez
Não se sabe ao certo se aconteceu em 1946 ou 1948, mas foi logo após o final daquela terrível guerra que assombrou o mundo. Seja como for, o fato se deu ao redor da região que hoje é conhecida como capital do Brasil.
Naquele tempo, havia um morador chamado Honório da Silveira, que era muito criticado pelos conhecidos por não colocar os filhos no serviço, deixando-os curtir a infância e, pasmem, até a adolescência. Pois é, ninguém entendia por que o homem queria que os herdeiros ficassem naquela mordomia de só estudar.
Honório, sujeito de posses, era um dos poucos que possuía automóvel por aquelas bandas. Aliás, ninguém falava automóvel, mas máquina. E foi justamente por conta disso que, numa noite fria de junho ou julho, alguém foi pedir ajuda ao ricaço.
— Por favor, o senhor é o único que pode me ajudar.
— Diga, meu rapaz. No que posso ajudá-lo?
— O meu tio morreu lá no sítio, e não tem ninguém pra ir buscá-lo. Lembrei que o senhor tem máquina de carroceria e poderia buscar meu tio pra gente velar e enterrar aqui no cemitério da cidade.
Honório, que corria de gente morta quem nem o Diabo foge da cruz, buscou socorro na esposa, Albertina. A mulher torceu os lábios, ergueu e abaixou os ombros sutilmente. Não tinha jeito, ele precisava ajudar. E foi o que fez.
Sem alternativa, Honório colocou uma capa de frio, assentou o chapéu na cabeça e, já quase saindo de casa, ouviu a voz do filho mais velho, o Vagner, perguntando se poderia ir junto.
— Coloque o casaco, pois o frio hoje está de lascar.
E lá foram os três buscar o defunto, que estava na fazenda Urutu, que era bem longe. Mal chegaram, tudo estava tão escuro, que nem dava para enxergar um palmo à frente do nariz. Isso sem falar que chovia a cântaros, o que dificultava ainda mais a tarefa que precisava ser cumprida.
— Senhor Honório, se preferir, poderemos passar a noite aqui e prosseguiremos viagem amanhã bem cedo.
O dono da máquina, escondendo o medo de passar a noite com o cadáver, disse que era melhor resolver aquela situação de uma vez por todas. Eles, então, ergueram o morto e o colocaram na carroceria. No canto, a viúva chorava humildemente para não atrapalhar o trabalho dos homens.
Sem demora, Honório ligou o automóvel, enquanto as outras pessoas, incluindo a esposa do falecido, se acomodavam no banco do veículo. Partiram e, pelas contas do motorista, chegariam antes do amanhecer. Só que ele não esperava que um imprevisto iria acontecer e, como é sabido hoje em dia, aconteceu naqueles idos.
Mais ou menos no meio do caminho, a camionete enfrentou um declive pouco antes de uma ponte de madeira. Honório, precavido, tratou de controlar a velocidade com o pé no freio. O carro conseguiu passar pela ponte, quando, então, Vagner alertou o pai sobre o aclive bem em frente.
— Papai, o senhor vai ter que dar mais carga no motor, porque, com essa lama, a máquina não vai subir.
— Sim, meu filho, já tinha pensado nisso.
Honório deu tanta carga no motor, que o automóvel subiu feito foguete. O problema foi que, com o solavanco, o defunto escorregou pela caçamba e forçou a portinhola, rompendo-a. E lá foi o marido da viúva, ribanceira abaixo, se estabacar dentro do riacho.
A mulher, aos prantos, viu os três homens desesperados descerem do veículo. Eles entraram no riacho, cuja água estava gelada. Mas frio era o menor dos problemas naquela situação. E, com a força que ninguém sabia possuir, conseguiram colocar o finado de volta à carroceria. Trataram logo de sair dali, antes que o improvável voltasse a acontecer.
Chegaram à cidade pouco antes do almoço. Velaram o corpo por algumas horas, até que todos os parentes e amigos pudessem se despedir do falecido. Ao pé do caixão, a viúva, com as mãos sobre a perna do marido, dizia em voz baixinha:
— Coitadinho do meu José. Além de morto, ainda quebrou a perna na queda.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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