Solange, viúva aos 83 anos, tratou de vender o amplo apartamento na Asa Sul e foi se embrenhar para os lados de Sobradinho, onde alugou uma quitinete. Velha que estava, não precisaria lidar com um imóvel enorme. Afinal, bastariam uma boa cama para deitar a carcaça e uma poltrona confortável para passar os dias no que mais amava: ler poesias.
Pois bem, lá estava a idosa entretida com o livro “A verdade nos seres”, do poeta Daniel Marchi, quando algo começou a incomodá-la. Que cheiro era aquele? A mulher ergueu o livro bem perto do nariz. Não! Daquelas páginas só era possível sentir o aroma de um jardim florido.
Curiosa que era, Solange olhou as solas do chinelo. Nada! Também, como poderia ter algo ali, se ela não saía do cubículo há quase dois dias? Decidida a desvendar aquele mistério, a senhora vasculhou todo o ambiente, que, de tão pequeno, foi percorrido em não mais de dois minutos, apesar dos passos vagarosos. Nadica de nada!
Que catinga era aquela? Foi até a janela, olhou pela fresta. Abriu-a toda, momento em que o fedor invadiu as narinas. Que inhaca!
A mulher esticou o pescoço e percebeu que saía fumaça da janela ao lado. Fez cara de braba e foi até a cozinha. Encheu uma caneca com água da torneira e se dirigiu à porta do vizinho. Um homem, não mais de 50 anos, abriu a porta. Charuto na boca, o morador sorriu para a velha.
Solange, sem pensar em algo melhor, sorriu todo o cinismo que lhe cabia. Jogou a água na cara do morador e foi embora. O homem, rosto molhado e charuto apagado, parece que entendeu o recado. Mudou-se no dia seguinte.
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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