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Viver 80 anos sem poder comer o que agrada é difícil

Idosos na região central de Brasília.

Envelheci com a dignidade de um daqueles monges beneditinos que não consegue se “amontar” mais nem em muros de arrimo. Nada igual aos meus tempos de adolescente robusto e de jovem dotado de apetrecho que chamava atenção dos galetos do bairro e mais ainda das concubinas dançantes da casa de Mademoiselle Macaxeira. Madame Satã e Kid Bengala não são páreos para o que já fui. Perdigueiro e, quando necessário, um carcará do papo amarelo, não admitia dias, semanas, meses ou tempos ruins. Trepava em montanhas de picos elevados, fendas escuras e matas tropicais bem aparadas como se fosse um carvalho de asas.

Na verdade, a semelhança mais próxima era com o Carvalhão, guindaste usado em obras enormes e de grandes profundidades. Também chamado de Pernalonga, o apelido de que não gostava era o mais utilizado pelas incautas sonhadoras e fervorosas nos momentos de intimidade arrogantemente maquiavélicos: João Bobão. Displicente e confiante em minhas aptidões ginecológicas, jamais me preocupei com os violentos, capadócios, cornucópios e sertanejos maridos da região. Eram muitos. A sorte é que, como antigos e ultrapassados símbolos de fertilidade, a maioria pouco se incomodava com eventuais ornamentos de testas.

Antes de seguir com a frenética narrativa, devo fazer um interstício para criticar todos os que zoam os cornos. Não há razão alguma para isso, na medida em que ele foi o único fiel. Aliás, por falar em zoar, reitero que chifre é igual ferroada de pernilongo espadaúdo, de pernas compridas e focinho grosso. Normalmente, a picada nem dói. O problema é o zum zum zum que o bicho sempre gera. Não lembro de já ter sido avisado da necessidade do chapéu de touro, mas não esqueço jamais a tese de meu avô Aristarco Pederneira: “Sozinho você não é nada. Nem corno”. Vale registrar que, a exemplo do maluco, do médico e do técnico de futebol, de corno todos temos um pouco.

Sábio e grosso como um cano de passar tolete, o velho sempre que podia sapecava uma das centenas de teorias aprendidas em Trás os Montes: “Corno é igual a botijão de gás. A casa que não tem um, tem dois”. É um tema complicado e sobre o qual poucos têm opinião formada. Os que já sofreram do mal do século são práticos. Segundo eles, o ideal é que não segurem a raiva. Se lhe chamarem de corno, meta o chifre neles. Voltando à narrativa com o João Bobo, estava eu despreguiçoso na casa de uma das citadas incautas. A pedidos, fazia a manutenção semanal e perfunctória de um sifão inativo, protuberante e quiçá perfumado.

De repente, tão de repente como um raio demolidor de prazeres, entra o corno, quero dizer o marido. Para manter o Bodocó ativo, isto é, salvar o borrachudo, tive de me trancar no armário. Nada do que estão pensando, pois é mais difícil eu me vandalizar como macho alfa do que a Seleção Brasileira devolver os 7 a 1 aos alemães de chuteiras com as pontas vermelhas. Me vali da metáfora utilizada à exaustão por Mister Catra quando queria negar o tamanho e a espessura da prole apenas para lembrar mais uma das velhas histórias do velho Aristarco.

Nos domingos de manhã, ele me fazia sentar próximo a seu cabungo preferido para repetir o que não se cansava de me dizer. Ainda que eu nada perguntasse, ele respondia sobre a desnecessidade da longevidade. Conforme o sapiente português, após os 60 anos o homem já não consegue mais faturar quem ele quer. Fatura quem ele não quer. Vem daí a máxima ensinada aos mais novos pelos papas da geriatria: De que vale viver tanto se a gente não pode mais comer o que nos apetece? Está aí a razão pela qual, enquanto puder, agirei como os pescadores de má sorte: caiu na rede é peixe. Quase me esqueço de informar que cabungo é somente um penico rústico de madeira.

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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