Sinônimo de opróbio, a vergonha é um sentimento que ultraja. Conforme o disse onário, é o medo de ser o que é, é escolher ser invisível para evitar ser alvo de críticas. E o que causa vergonha? A desonra, a obscenidade, a indignidade, a falta de decoro, a quebra de expectativas e, principalmente, a decepção. Para a maioria dos filósofos de ontem e de hoje, o maior erro de quase 100% das pessoas é ter vergonha de serem quem são. É mentir a esse respeito, fingindo ser alguém diferente. Esquecem que fingir ser alguém que não é sáo aumenta os problemas, na medida em que falta-lhes a necessária coragem para descobrir que quem tem vergonha na cara só se decepciona uma vez.
Como, além de Deus, nada é eterno, percebe-se uma mudança de conduta bem interessante nesses últimos tempos. A impressão recebida é no sentido de que o ser humano passou a ter orgulho do que tem, do que faz e do que pode alcançar. O melhor dessa reflexão é que até mesmo o histórico patriotismo foi posto em xeque. Ou seja, parece ter ficado no século passado a época em que nos sentíamos obrigados a emoldurar nosso gentílico apenas para evitar que nossos sentimentos negativos em relação à pátria amada tivessem ecos com decibéis acima do permitido.
O arquétipo do brasileiro padrão sempre foi aceitar qualquer mazela sem reclamações. O medo maior era expor imerecidamente nossos governantes. Voltamos atrás e, por exemplo, passamos a nos orgulhar da vergonha de eleger políticos e/ou mandatários como os nossos. É a mostra mais eloquente do aprendizado e amadurecimento do povo. Como prova da escuridão que vivemos, a declaração de venezuelização do Brasil partiu de um organismo integrado por senhores dos quais não nos orgulhamos nem um centímetro. Não é o único, mas merece respeito pelo ineditismo e pala coragem de expor o terreno lamacento em que circulam seus próprios membros, obviamente parte dos números a seguir.
Em recentíssima pesquisa, o DataSenado tirou nosotros da caixinha. Na lata, perguntou: “Você sente orgulho ou vergonha de ser brasileiro?” Sem qualquer surpresa, pelo menos para mim, 62% dos entrevistados responderam sentir vergonha, enquanto 31% se orgulham. Entre os consultados, somente 3% não sentem nem vergonha e nem orgulho, isto é, aceitam o que oferecem. Os 4% restantes são os omissos de sempre. Conforme os dados, a situação é bem pior entre os jovens. Na faixa até 29 anos, 70% têm vergonha. Desses, 40% planejam deixar o o país na primeira oportunidade.
É um bom sinal, mas ainda insuficiente para tentarmos mudar o status quo da política e dos políticos brasileiros. Antes de qualquer sentimento mais nocivo, é fundamental que deixemos de ter vergonha da vergonha que não produzimos. Em outras palavras, temos de denunciar, reclamar, espernear e escantear todos aqueles que nos envergonham, aqueles que, desavergonhadamente, se utilizam do povo e, ainda mais grave, do que é da sociedade ordeira, honesta e digna. Como certamente boa parte do povo ouvido está apta a votar para presidente da República, governadores, senadores e deputados em outubro próximo, os números são assustadores tanto para a esquerda quando para a direita.
De tom mais fúnebre do que festivo, a resposta dada aos pesquisadores soa como o fim de uma crença que aparentava ser tênue desde o resultado do pleito de 2018. Naquela época, dizíamos que o Brasil estava ruim com o petismo, mas que iria melhorar quando Bolsonaro assumisse. O mito assumiu e nada mudou. Na verdade, ficou pior. Então, natural que não haja mais esperança de que alguém irá mudar a vida dos brasileiros. Perdida faz algum tempo, a vergonha que parece em recuperação poderia ser vendida em farmácia, pois tem gente que precisa de altas doses. Se passamos a ter vergonha do que somos, do que temos ou de quem escolhemos, as perguntas que não querem calar são simples: Por que erramos tanto? Por que temos prazer em quebrar a cara?
Interessante, mas, ao mesmo tempo em que não acredita em uma única vírgula do que é divulgado pelos políticos, particularmente pelo presidente da República, o povo continua preferindo gestões de conflito e de mentiras. Minha opção sempre será a verdade, principalmente a que tem uma única versão. Como dizia minha avó nos sermões da Ave Maria, me magoe com a verdade, mas não me engane com a mentira. No fim e ao cabo, a vergonha é a emoção que não permite que sejamos nós mesmos. É chegada a horas de deixarmos de ser invisíveis. Mostremos nossa cara, nossa força. O voto é nossa arma. É a partir dele que podemos reduzir a vergonha de ser brasileiros.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978