Cagão, cagão, cagão
Vovó sabia das coisas antes mesmo do bullying surgir
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emMinha avó, apesar de nunca ter tido contato com a teoria da relatividade de Albert Einstein, sabia explicá-la como ninguém para os seres mais incautos. Este, aliás, era o meu caso quando eu estava com meus quase oito anos e mal havia começado o primário.
— Vovó, vinte quilômetros é muito?
— Depende.
— Do quê?
— Se vai de carro, é perto; se é a pé, ih, é longe demais.
— E cem metros?
— Depende.
— Se é de carro ou a pé?
— Não.
— Do quê, então?
— De quão apertado você está pra sentar no vaso.
Errada, vovó não estava. No entanto, quero contar outra passagem que tivemos juntos, quando precisei enfrentar o medo de um garoto da escola. O cara era bem maior e tinha o dobro do meu peso. Ele vivia tocando o terror em todos e, naquela época, jurou que iria amassar a minha cara, caso eu não desse o meu lanche para ele.
Certo dia, minha avó me percebeu acabrunhado. Tentei disfarçar, mas a velha era deveras perspicaz.
— Não é nada, vovó.
— Hum! Tá vendo aquele pardal ali naquela árvore, Toninho?
— Sim.
— Pois bem, vá lá contar essa lorota pro passarinho. Talvez ele acredite em você.
Sem para ter para onde correr, acabei revelando o motivo de eu estar alquebrado. Vovó me encarou e, não tardou, me lançou um olhar cheio de brilho acompanhado daquele sorriso faceiro que só ela possuía.
— Amanhã, você vai dar o seu lanche pro valentão.
— Mas, vovó, assim vou ficar com fome.
— Vai nada! Coloque alguns biscoitos no bolso da calça. E pode acreditar, pois tudo vai ficar bem.
E lá fui para a escola, ainda encucado com aquela situação. O que minha avó teria planejado? Seja como for, aquilo me encheu de confiança. E, na hora do recreio, não tardou, o brutamontes se aproximou e me mostrou os punhos fechados.
— E aí, moleque, cadê o meu lanche?
Sem pensar duas vezes, fiz como vovó havia me orientado. Abri a lancheira e o glutão roubou o meu sanduíche de queijo na maior cara de pau. Em seguida, virou-se de costas e saiu tranquilamente pelo pátio da escola. Foi a oportunidade que tive para matar a fome buscando os biscoitos escondidos nos bolsos.
O resto da manhã foi tranquilo. Tive prova de matemática e tirei a maior nota da sala. Não me lembrava sequer do ocorrido no recreio quando o sinal tocou e fui andando para casa da minha avó, que ficava a duas quadras do colégio. Mal cheguei, lá estava a mãe da minha mãe terminando o almoço.
— Toninho, quer me ajudar a colocar os talheres na mesa?
A macarronada estava excelente! Aliás, até hoje sinto saudade daquele molho que só a minha avó sabia fazer. Quando conto para meus filhos como vovó era excelente cozinheira, todos lamentam não a ter conhecido.
No dia seguinte, retornei para a escola, onde os estudantes, em grupos, riam. Sem entender aquilo, fui até o Gustavo e o Pedro, que eram meus melhores amigos naqueles tempos.
— Não tá sabendo o que houve, Toninho? – Pedro, com cara de surpreso, perguntou.
— Não.
— Aquele cara da sétima série saiu da escola.
— Ué, por quê, Gustavo?
— Ontem, ele teve uma diarreia na sala. Ficou todo borrado. O cheiro ficou tão horrível, que a professora precisou interromper a aula.
Assim que ouvi meus amigos, o valentão, acompanhado dos pais, saiu da sala da diretora e foi embora. Segundo soube depois, ele ficou tão envergonhado pelo ocorrido, que pediu para ser transferido. Entretanto, antes que pusesse ultrapassar o portão da escola pela derradeira vez, vários estudantes gritaram:
— Cagão! Cagão! Cagão!
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*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.