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Vozes refugiadas. Sobre crianças e histórias de guerra

Foto/fundacaosmbrasil.org

Maria Fernanda Rodrigues

Adam tem dois anos e meio e não sabe de nada ainda. Não sabe da guerra que está destruindo a Síria. Não sabe o que seus pais passaram para sair de lá nem dos 41 familiares que sua mãe perdeu desde 2011, quando o horror começou. Também não sabe que seus tios encontraram abrigo na Alemanha e sua avó, na Macedônia – e que seu avô ainda está em Aleppo, de onde sairia depois de garantir que todos deixassem o país em segurança, mas que só encontrou fronteiras fechadas. Não sabe das marcas que as surras do primeiro marido deixaram em sua mãe nem que seus meios-irmãos, sequestrados pelo pai deles, espião de Bashar al-Assad, pensam que são órfãos.

Adam é brasileiro. Sua mãe, Razan Suliman, de 27, chegou grávida de 40 dias sem nem desconfiar. Ela e Mohammed só falam em árabe com o filho, mas ele só quer saber de falar português. Já frequenta a escolinha, o que ainda não é um assunto tranquilo em casa. “Ou ele bate ou ele apanha. Todos os dias. Não gosto disso”, conta Razan. A adaptação nunca é fácil para nenhuma criança. Para o garoto, que vive entre duas culturas, com tantas histórias, traumas, sombras e silêncios, tudo pode ser, ou pode vir a ser, ainda mais confuso.

Como Adam, há outras crianças mundo afora: a primeira geração de filhos de refugiados nascida longe da guerra. Há também as crianças que, submetidas a situações de risco, hoje tentam reconstruir a vida em seus novos países. E há as outras crianças que, vivendo em lugares pacíficos, assistem à guerra pela televisão, veem imagens dos bombardeios, das cidades em destroços e do corpo do pequeno Alan Kurdi estendido na praia – e, ao chegar na escola, encontram meninos como Adam, ou como os irmãos dele, que hoje, com 8 e 6 anos, vivem na Alemanha.

Sensibilizados pelo drama de vida de milhões de pessoas que se veem obrigadas, por segurança, religião ou fome, a deixar tudo para trás, vagar por estradas, atravessar continentes, implorar por abrigo – e depois por casa, comida, emprego -, escritores estão ajudando a contar essa história.

O pernambucano Tadeu Sarmento acaba de ganhar o Prêmio Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil com o original de O Cometa é um Sol Que Não Deu Certo, que, situado em campo de refugiados sírios na fronteira com a Jordânia, fala sobre a amizade entre quatro garotos.

Sarmento acompanhava as notícias vindas da Síria, mas foi após ver Alan Kurdi que sentiu a necessidade de escrever. Para o autor, a principal pergunta de sua obra é: “o que aconteceu conosco para que permitíssemos que crianças tenham que lidar com uma realidade que, por si só, já é bem difícil de lidar, até mesmo por quem é adulto?”. Ele completa: “Acho a violência contra a criança a pior de todas as misérias humanas”.

O Cometa… sairá em outubro, mas há outras boas opções nas livrarias e o catálogo da Pulo do Gato, com obras que falam de direitos humanos, da criança em situações de vulnerabilidade, da guerra e do refúgio vista pelo foco da infância, se destaca.

“As crianças precisam de livros que permitam interlocuções sobre temas que as ‘rondam’ direta ou indiretamente e sobre os quais têm curiosidade ou necessidade de diálogo”, conta Márcia Leite, fundadora da Pulo do Gato. “Sabemos que não é possível apagar o que foi vivido nem na vida dos adultos nem na das crianças. Mas, algumas vezes, as páginas dolorosas da vida podem receber algum conforto de forma indireta pela literatura.” Para a editora, a literatura para crianças favorece a construção dos processos de autoconhecimento e da empatia.

Alguns de seus livros tratam diretamente de questões vividas por Razan e Mohammed, como é o caso de Um Outro País Para Azzi, da britânica Sarah Garland, que teve contato com famílias de refugiados. Ou Eloísa e os Bichos, de Jairo Buitrago e Rafael Yokteng, sobre a adaptação de uma menina e seu pai numa nova cidade. Outros são mais metafóricos, como o delicado A Viagem dos Elefantes, do colombiano Dipacho.

Quem também conviveu com refugiados, na Itália e na Suíça, e criou uma ficção baseada em seus relatos foi a ilustradora italiana Francesca Sanna. Ao Estado, ela conta que quis adotar uma abordagem empática para uma história que parece distante de nossa vida, mas não é. Quis, também, falar sobre direitos humanos e sobre o direito de se ter um lugar seguro para viver.

Seu premiado A Viagem (V&R) narra a saga de uma mãe e seus filhos para fugir da guerra que matou o pai das crianças.

Sanna costuma participar de leituras em escolas e bibliotecas. “Minha hora preferida é a das perguntas. Algumas são sobre os personagens escondidos (Isso é uma raposa? Por que tem uma raposa?), outras, sobre assuntos mais existenciais (Por que existem fronteiras?). Algumas são muito políticas e um pouco confusas (Seu livro é sobre Donald Trump?). Se eu pudesse decidir como esse livro seria lido, provavelmente seria assim, com muitas perguntas e também com uma pergunta sobre por que é importante discutir assuntos como esses”, diz.

A historiadora brasileira Márcia Camargos e a escritora e ilustradora Carla Caruso lançaram, em 2015, Diálogos de Samira (Moderna), possivelmente o primeiro focado no público juvenil a ser publicado aqui, e que já foi adotado por escolas.

“Pretendíamos mostrar não só os horrores do conflito, mas também chamar a atenção para o lado humano do drama, por meio dos personagens, um menino sírio e uma garota brasileira, ambos com a mesma idade dos leitores. Isso ajuda a criar uma empatia e uma identificação com este público adolescente que, esperamos, seja despertado para a solidariedade aos mais fragilizados e vulneráveis em certos momentos históricos. Acima de tudo, desejamos que eles possam exercitar a tolerância em relação ao ‘outro’, no sentido de diminuir o preconceito contra o universo islâmico e o mundo árabe em geral”, explica Camargos.

Hoje Adam folheia os livros e se diverte com os detalhes. Sem recursos para entender a realidade que o cerca, ele se encanta com os pássaros, com as cores. “Mas essa criança logo precisará falar a respeito, pois com certeza já convive, ainda que não conscientemente, com o tema, por meio do que capta e sente ao seu redor, aquele território do ‘não dito’, mas sentido, que vem da história de seus pais e familiares. Haverá um dia em que a literatura, a ficção, poderá ajudar essa criança a entender melhor o que ainda não sabia nomear. Ajudará a que ela se aproxime mais do que sente, a saber que não está sozinha”, comenta Márcia Leite.

Razan tem esperança de que com livros como esses os brasileiros, incluindo os professores e amiguinhos de seus filhos, compreendam melhor sua realidade. Aos trancos e barrancos, vendendo comida para viver, dependendo de uma ajuda da Mesquita do Brasil que está para acabar, a família está feliz. “Aqui não tem guerra. A cultura é diferente, mas Adam está em paz, num lugar seguro. Come e dorme bem.” O sonho, agora, é que o marido consiga um emprego e que o negócio da comida prospere para que possam ter uma casa no Brasil que abrigue não apenas o trio, mas o pai de Razan, que ainda corre risco de vida, e os filhos que ela espera reencontrar.

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