Notibras

Xangô e deuses nórdicos livram o baiano Lúcio de pesadelos noturnos

O monstro apareceu de madrugada, quando Diego dormia profundamente. Uma criatura, literalmente, de pesadelo. Estava distante, ainda não dava para perceber seu focinho medonho, apenas o formato grotesco de seu corpanzil e leves eflúvios de sua aura maligna. Diego acordou aos gritos e não dormiu mais pelo resto daquela noite chuvosa em Salvador.

Na madrugada seguinte, quase a mesma coisa. Agora, porém, eram dois vultos monstruosos, diferentes entre si, mas igualmente apavorantes.

Aproximavam-se devagar, mas de um modo que parecia inexorável. A aura maligna estava mais forte, seu odor de carniça quase o fez vomitar.

Bem cedo, tão logo saiu do quarto, Diego correu para a igreja evangélica que costumava frequentar. O pastor não o ajudou, limitou-se a repetir frases feitas do tipo “O sangue de Jesus tem poder”. Tem, ele acreditava nisso, era cristão devoto – mas repetir essas palavras antes de dormir seria o suficiente para enfrentar monstros?

Saindo da igreja, procurou ajuda médica. Nova decepção. O primeiro profissional a ser procurado simplesmente achou que ele estava fantasiando e o encaminhou a um colega, que lhe prescreveu um medicamento tarja-preta para “dormir sem sonhos”. Algo como remover o sofá da sala para impedir um adultério. Felizmente, o terceiro médico consultado fez algo útil: o encaminhou a um analista.

– Acho que ele é junguiano – esclareceu o doutor. – Eles lidam com sonhos. Se ele não conseguir ajudá-lo…

O subtexto era claro: “Você está lascado!”

O psicólogo analista (ou seja, junguiano) ouviu o relato e deve ter acreditado nele, pois observou:

– A solução para um ataque de pesadelo deve ser buscada no universo onírico. Convoque forças protetoras para apoiá-lo, em seus sonhos.

Diego não saiu muito convencido, mas uma passagem de Marcel Proust, no segundo volume do romance Em busca do tempo perdido, o convenceu a pelo menos tentar. Era a seguinte:

“Se um pouco de sonho é perigoso, não é menos sonho que há de curá-lo, e sim mais sonho, todo o sonho.”

Diego tratou de seguir ao pé da letra os conselhos do junguiano e do romancista. Convocou em seu auxílio os deuses do machado – o nórdico Thor e Xangô, do panteão iorubá – e dois poderosos senhores da guerra com suas espadas de ferro: Ogum, do candomblé, e Ares, do Olimpo. Tratou de reverenciá-los com a queima de ervas rituais do candomblé. Sabia que não era a maneira adequada de atrair as vibrações de Ares e Thor, mas estava desesperado, não sabia o que fazer.

Quando começou a sonhar, as divindades não vieram. Os monstros sim, agora três, em marcha lenta mas inexorável. Já distinguia o focinho de cada um, e o odor pavoroso – diferente em cada caso, todos semelhantes em sua malignidade – o fez vomitar.

Diego acordou ao alvorecer, e passou o dia estranhamente calmo. Queimou as ervas rituais, mas tinha consciência de que nada mais poderia fazer.

Depois que adormecesse, os quatro monstros de pesadelo – tinha certeza de que já seriam quatro – se aproximariam mais e mais. Em poucas noites ele estaria ao alcance de suas garras imundas, começariam a feri-lo e em seguida dilacerariam seu psiquismo. Qual seria o efeito disso em seu corpo físico? Tremeu só de pensar.

Tão logo começou a sonhar, os quatro monstros se aproximaram. E os quatro deuses também. Os dos machados esmagaram membros e crânios; os das espadas feriram mortalmente os que haviam sobrevivido ao choque inicial. Diego acompanhou todo o combate onírico. Depois, agradeceu de todo coração a suas entidades protetoras e teve uma noite de sono tranquilo, sem pesadelos.

Desde essa noite, ele se esforça por sonhar. Sonhar muito, sonhar sempre. Continua a se consultar com o psicólogo junguiano e relê continuamente as palavras de Proust, que parecem dirigidas a ele:

“Quando um espírito é inclinado ao sonho, não devemos mantê-lo afastado deste (…). É preciso conhecer inteiramente os nossos sonhos para não mais sofrer com eles (…).”

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