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Zé Di Cazuza, de cambono a empreendedor, só não fez chover

Toda cidade brasileira que se preza tem um bêbado com algum recorde no Guiness Book ou prestes a ser inscrito na Wikipédia. Berço dos amigos Zé e Isa Gomes, os grandes Di Cazuza, Caetité, no interior baiano, endeusava Neném Caifás. Azumbrado do raiar ao por do sol, o mancebo era reconhecidamente o maior mamador daquela maravilhosa cidade visitada periodicamente pelo famoso pai de santo Antônio Carlos Magalhães, também alcunhado na região por Pai Tomás. Conheci Caetité por engano. Pensei em chegar em Guanambi, terra de Nilo Coelho, com quem tinha uma entrevista marcada. Por uma dessas obras divinas, aportei onde Zé Gomes e seu pai, o velho Di Cazuza, catalogavam os feitos de Caifás. E foram muitos. Um deles foi com o véio Cazuza, homem sério, abstêmio e, nas horas vagas, cambono de Pai Tomás.

Após alguns trabalhos em parceria e em louvor de dona Canô, ambos conseguiram o impossível: jorrar petróleo no chão em que só dava cacau. Conto mais adiante a aprontação de Caifás, também conterrâneo do ex-deputado e ex-ministro Prisco Viana e do cantante Waldick Soriano, pioneiro das músicas sobre chifre. Não entrevistei Nilo, mas me fiz amigo de Zé, o filho do véio sério, respeitado e abstêmio Di Cazuza, e acabei conhecendo as histórias de Prisco sobre Sarney (não conto nem sob porrete) e ouvindo as cachorradas e os numerosos verbetes relativos a cornos apresentados por Waldick. Aventureiro, Zé jamais sentou em um banco de faculdade. Na verdade, nunca sentou em coisa alguma. No entanto, era bem letrado, culto nos conhecimentos gerais, falador, fazedor de línguas e companheiro de última hora do comandante irlandês do transatlântico Island Escape, carinhosamente apelidado pelo nosso protagonista de Ilha do Peido. Só para ilustrar, seu menor feito foi uma viagem de escuna de Maceió até Lisboa. Era o Zé de todos, o Zé imortal, o Zé Di Cazuza que só não fez chover.

É o Zé que, na pior das hipóteses, está hoje contando alguns equívocos de Pedro Álvares Cabral ao filho do dono do mundo. Voltando ao tema, perdi Nilo Coelho de vista, mas consegui histórias inimagináveis. Coroado coroinha da velha matriz da cidade, Zé Gomes não esquecia o dia da procissão do Senhor Morto. E não só a seguia. Acompanhava de perto o mestre musical Robério Ariovaldo, formado no interior sergipano e regente da bandinha local. Carregado por quatro fornidos rapazes da Grande Caetité, o andor era seguido por uma multidão contrita, pelo prefeito Cláudio César Ladeia, venerando das causas populares, pelo padre Jackson Ubiratan e pelo monsenhor Robson Etiene, vindo da capital especialmente para o divertimento sócio-religioso. Entre um e outro acorde, Zé observava eventuais eventos paralelos. Pelo andar do andor, pensei em caminhada de, no mínimo, dois dias, mas terminou bem antes e de maneira trágica.

De repente, o filho de Cazuza percebe, descendo das ruas íngremes da cidade, o ônibus do tipo jardineira que ligava diariamente Caetité à vizinha Guanambi. A lotação descia sem freio e justamente na direção do povo de olhos fechados da procissão. Correndo no meio do povo, Zé chegou aos ouvidos do padre Jackson e anunciou a iminente catástrofe. Microfone à mão, o sacerdote lascou a lasca de torresmo no canto da boca e começou a gritar: “A jardineira, a jardineira, a jardineira”. Obediente e longe do fato, o maestro Robério Ariovaldo ajeitou a sanfona, estalou os dedos e a bandinha sapecou: “Oh, jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?” No dia seguinte, os jornais de Salvador e do país ainda não tinham notícias do número total de mortos. Perdido e também dançando no meio do frisson popular, fiquei sem a matéria. Fui demitido, mas até hoje não esqueço que, diante de um absurdo jornalístico, primeiro a devoção. A diversão fica para depois. E ficou.

Aposentado, o velho Di Cazuza resolveu empreender. Testemunhei a montagem de uma farmácia, erguida para mode nosso benemérito passar o tempo mais rápido. Comum nas cidades interioranas, toda inauguração tem de ser precedida de algumas besteirinhas para forrar o bucho, também conhecido na região por estombro. Reportando mais essa história, atesto que a bandeja estava lotada de croquetes variados, quibes, pastéis e uns canapés de carne de bode. Tudo regado a Ki Suco de framboesa importado de Salvador. Encerrada a festança, Di Cazuza fechou o estabelecimento e recolheu-se a seus aposentos, no andar de cima. Na prateleira do empreendimento, uma fartura de cibalena, melhoral, merthiolate, pomada Minâncora, alka seltzer, camisas de vênus somente até o P (tamanho máximo dos caetiteenses) e a última novidade da indústria farmacêutica da época: supositórios bicolores e lubrificados, de modo a facilitar o escorregamento esfinctório.

Aí ressurge Neném Caifás. Madrugada correndo solta, muito frio e uma chuva torrencial. Do nada, começa uma longa bateção na porta de aço da farmácia. Preocupada, dona Cazuza acorda o velho e pede para ele atender. “Enchi o bucho do povo e qual foi minha paga? Não me compraram sequer um remédio para lombriga. Não vou!” Tamanha a insistência da patroa, Di Cazuza, imaginando uma criança febril, uma grávida próxima da hora ou um idoso em estado terminal, resolveu conferir. Ao levantar, de roupão estrelado, deu de cara com Neném Caifás. Enfurecido o recém-empossado empresário perguntou ao bebum: “O que você quer a essa hora?” “Eu quero me pesar”, respondeu Caifás, que, segundo a lenda caetiteana, foi internado com múltiplas fraturas. Felizmente, o moço morreu recentemente e de Covid. Me parece que esta foi uma das histórias contadas por Prisco Viana a José Sarney. E sabem o que Prisco recebeu de troco? Um monte de Marimbondos de Fogo. Melhor morrer na procissão.

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