Desceu a rua com um ar grave. Os olhos marejados de sono denunciavam a vida boêmia de preto àtoa. Naquele domingo ensolarado e abafado, os paralelepípedos de Santa Teresa luziam ao sol da tarde junto com os telhados de zinco, o que parecia reforçar o cheiro que exalava das cozinhas. Domingo é dia de feijoada, couve e farofa na casa da mãe.
Domingo em Santa Teresa. Velhos sentados à porta de casa, expulsos pelo calor, a conversar sobre a vida alheia, o jogo do bicho. Moleques sem camisa jogando bola, com as pernas ruças e os dedos já estourados. Pipas no alto, cerol a rasgar-lhes o indicador.
Sol, jogo no Maraca, trem lotado, ruas intransitáveis. A cabeça passa e repassa a escalação do Mengão: Cantarelli, Leandro, Rondineli, Andrade, Zico, Adílio, Cláudio Adão… Será que o Cláudio Coutinho vai escalar o Júnior na lateral esquerda? A zaga precisa de um reforço mais ofensivo contra o Vasco.
Passou pelo bar no pé da ladeira e tomou uma “bola de fogo”. Afinal, beber é o melhor jeito de curar uma ressaca. Pegou a camisa até então pendurada no pescoço e a vestiu. Tomou o 434, pulou a roleta e juntou-se à massa, desviando do bandeirão enrolado no chão do ônibus. Cantava hinos reverberantes de provocação ao Bacalhau, batucava no teto do coletivo, mexia com a mulata que atravessava o sinal. Até a patrulha da PM, com sua “Joaninha” azul e branca foi alvo de provocação: “… e ninguém vai me segurar, nem a PM!”.
Lapa, Estácio, São Cristóvão, Maracanã. A porta se abriu e saltou do ônibus. Os urubus saíram à solta, correndo em bandos, sacudindo bandeiras, entoando cânticos sagrados, assustando uns, irritando outros. Ganhavam resmungos e muxoxos dos senhores com seus radinhos de pilha colados aos ouvidos, tentando escutar o Waldir Amaral. Pularam a grade do Mário Filho como bons Arquibaldos sonegadores de ingresso e bateram em revoada rumo à arquibancada, berço da festa democrática de toda torcida organizada.
O Maracanã se transformava em um caldeirão fumegante, antes mesmo do início do jogo. As torcidas vestidas com seus mantos sagrados, tremulavam bandeiras enormes e cantavam, em uníssono, provocações várias. Flamengo e Vasco. Rubro-negros e cruzmaltinos. Urubus e Bacalhaus. E dentro de cada torcida, as pessoas se uniam, sem distinção: pretos e brancos; velhos e crianças; ricos e pobres. Todas as diferenças eram reduzidas por algo mais forte e único: o amor incondicional ao clube do coração. A paixão nacional. Até os ambulantes, com seus isopores nos ombros a vender cerveja e picolé, não se olvidavam em comemorar com abraços apertados e gritos frenéticos o gol marcado, e também xingavam com pragas e ofensas o juiz ladrão.
A Geral era um show à parte. Cartazes, bandeiras, figuras únicas:
imperadores banguelas do mundo do futebol. Os Geraldinos eram a alma do Maraca, o tempero do gramado. Tão perto! Não obstante os copos de urina de que era alvo, a Geral, diziam muitos, era o melhor lugar para se ver o jogo. Símbolo cultural da cidade.
A partida começara e os dois times já demonstravam a tensão provocada pela decisão frente a um Maracanã lotado. Travas à mostra e faltas desnecessárias traduziam o nervosismo. A velocidade das jogadas não era concluída com algum lance perigoso de fato. Zico, o maestro do time rubro-negro se dividia entre as investidas adversárias em lhe tirar das jogadas e as tentativas de ligação do meio-de-campo com o ataque.
Roberto Dinamite, pelo clube cruzmaltino, era o craque do time e brindava a torcida com algumas tentativas de belas jogadas e dribles. No entanto, as finalizações sempre encontravam uma intransponível barreira no zagueirão Rondinelli. Ao final do primeiro tempo, o jogo se mostrava intrincado, apesar da raça que transbordava das duas equipes. Na torcida, o calor era intenso e deixava o ambiente abafado, o que causava uma dança de fragrâncias não muito agradáveis no ar.
O segundo tempo se inicia e o equilíbrio foi permanecendo até os minutos finais. Aos vascaínos bastava segurar o empate. As torcidas cantavam quase num tom de prece, quando uma bola cruzada por Andrade foi mandada para escanteio pela cabeça de Júlio César. Cobrança no córner esquerdo do goleiro vascaíno Leão. Zico se apresenta de improviso. Cobre aberto. A torcida levanta e tranca a respiração. Rondinelli aparece por trás da defesa e soca a redonda com a testa para o fundo da rede; sacudiu o capim no fundo do barbante. A nação rubro-negra enlouquece. Mais uma vez Rondinelli é aclamado pela torcida: “Deus da raça”. As estruturas do velho estádio sacodem com a arquibancada em polvorosa. Flamengo campeão carioca de 1978. Espuma de cerveja e camisas a girar acima do black power do nosso personagem. A cabeça latejava, ainda tonta do álcool da véspera e o ouvido zunia com o canto ressonante de que sua própria voz fazia parte. A alegria parecia estourar seus tímpanos.
Na saída, alguns tentavam entender o que acontecia, outros tentavam fugir e outros buscavam a briga. Os ânimos exaltados dos vencedores e perdedores eram os senhores da festa e da luta. Empurra-empurra, bate carteira, perde sapato, some criança. Fogos e bombas de ar lacrimogênio. Pedras e paus. A Avenida Maracanã tornava-se um campo de batalha enquanto nosso preto em close tentava correr por cima de pés incautos.
Tudo parecia inalcançável para quem desejasse sumir da confusão: a paz, o 434, Santa Teresa. Corria desesperado em meio a vascaínos e flamenguistas e amaldiçoava o futebol quando uma pedra portuguesa alcançou sua têmpora em cheio. Tombou, foi pisoteado e esquecido.
O sol do verão parecia lhe cegar a vista ensangüentada e aquecia o ar insuficiente que respirava. Arfando um surdo soluço, sentiu calar o bumbo do peito e turvar de vez os olhos arregalados. Morria em prece aos pés de Bellini: “…É campeão!”
Por entre o tumulto que se estendia pelas ruas adjacentes, o fusca da PM tentava cortar a fumaceira com sua sirene estridente, como que atravessando trincheiras. Para com um berro e um “Canela de Couro”, desce da viatura com um 38 idoso nas mãos. Corre-corre. Tiros para o alto. Volve a vista: um corpo estendido no chão. Vira-o com o coturno e grita: “Carvalho, passa um rádio pra buscarem o presunto!”. E Carvalho, um Cabo gordo de língua presa e vascaíno doente, encosta seu bigode gorduroso no rádio da patrulha e informa, de maneira insolente, ao outro do rabecão: “Zico, camisa 10”.